Zoneamento de Curitiba: do arruamento ao bairro industrial (1720-1895)
O zoneamento de Curitiba está prestes a passar por uma renovação. Atualmente, a legislação, que é do ano de 2000, está em debate na Câmara Municipal de Curitiba (CMC) e nesta semana os vereadores irão votar o novo texto. A ideia de dividir o espaço urbano em zonas com características próprias ganhou força após a Revolução Industrial. A primeira cidade a formular e aprovar uma lei de zoneamento foi Frankfurt, na Alemanha, em 1891, mas medidas isoladas nesse sentido foram aprovadas desde o início do século 19 em diversos países (como foi o caso da França em 1810 e da Prússia em 1875). Essencialmente, como explica o professor Renato de Saboya, no site Urbanidades, o zoneamento divide a cidade em áreas sobre as quais incidem diretrizes diferenciadas para o uso e a ocupação do solo. Tais diretrizes, em geral, são limites e restrições. O projeto Nossa Memória, da CMC, irá contar em três partes a história do zoneamento em Curitiba, da fundação da cidade até hoje.
Alguns pesquisadores, como o professor Magnus Roberto de Mello Pereira, entendem que a fundação da Vila de Curitiba se deu em etapas. A primeira seria a construção da primeira capela ainda na década de 1650. A segunda seria a ereção do pelourinho, em 1668. A constituição da Câmara Municipal em 1693 seria a terceira. E todo o processo se encerraria em 1721, com a visita do ouvidor Raphael Pires Pardinho. De acordo com Magnus Pereira, em seu estudo "Para o bom regime da república: ouvidores e câmaras municipais no Brasil colonial", Pardinho era responsável por fiscalizar várias vilas que surgiram ao sul de São Paulo, Curitiba entre elas. Nessa missão ocupou dois anos. Ele não só passava pelos locais. Ele se inteirava dos problemas e editava provimentos específicos para cada vila. Tais provimentos continham recomendações quanto ao andamento das câmaras, às atribuições dos juízes e dos vereadores, questões relacionadas ao comércio, à higiene pública, questões religiosas e toda sorte de assuntos.
Nos seus provimentos para Curitiba, Pardinho recomendou que fosse cobrada uma multa de seis mil réis a todo aquele que construísse uma casa na cidade sem antes pedir licença à Câmara. Ainda segundo ele, seria obrigatório que as novas casas construídas seguissem o alinhamento das já existentes. “Porque [casas isoladas] além de fazerem a Villa e Povoação disforme, ficão os vezinhos nelas mais expostos a insultos e desviados dos outros vezinhos para lhe poderem acudir em coalquer necessidade quer de dia ou de noite lhes sobrevenha”, escreveu o ouvidor.
Pardinho estabeleceu que quintais seriam permitidos conforme a testada das casas e, em seguida, salientou que era necessário cercar os terrenos e manter as portas das casas fechadas sempre. Mas em certo ponto ele se aprofundou numa questão: o rocio, isto é, a região que ficava no entorno do núcleo central da vila. Naquele momento inicial, a povoação dessas áreas era totalmente irregular e caótica. Pardinho demandou da Câmara que providenciasse um levantamento dos moradores do rocio para que suas terras fossem demarcadas.
De acordo com o pesquisador Rafael Augustus Sêga, Pardinho “procurou, em seus ‘129 Provimentos’, adequá-la [a vila de Curitiba] aos moldes barrocos: arruamento retilíneo em grade ortogonal, quadras em volumetria única, ausência de vegetação – lembrar que a cidade deveria, por esse modelo, ser definida como oposição ao campo”. Pardinho apontou que a Vila de Curitiba em 1721 contava em suas duas freguesias com 200 casas e aproximadamente 1.400 pessoas. A importância dos provimentos do ouvidor Pardinho pode ser verificada pelo fato de que o documento serviu de parâmetro para outras legislações locais e também das vilas vizinhas nos anos que se seguiram, sendo que mais de cem anos depois, o Código de Posturas de 1829 apenas revisou seus termos mantendo sua essência.
Taulois
O advento da Emancipação Política do Paraná em 1853 e o aumento na produtividade da erva mate em Curitiba criaram o ambiente para que houvesse uma preocupação maior com a urbanização da cidade. De acordo com Romário Martins, Curitiba à época contava com 5.819 pessoas distribuídas em 308 casas. Em 1857, o engenheiro francês Pierre Taulois foi contratado pelo governo provincial como Inspetor Geral de Medição de Terras Públicas. Seu levantamento das principais ruas da cidade concluiu que apenas duas se cruzavam em ângulo reto: a rua da Assembleia (atual alameda Dr. Muricy) e a rua do Comércio (atual Marechal Deodoro).
Nem mesmo a rua XV era retilínea. Segundo o historiador Rui Cavallin Pinto, a via era “torta e ondulada, tanto que, quem via o início não conseguia ver sua extremidade final. Taulois não cuidou dela e só mais para adiante no século é que a rua foi nivelada, ganhando um declive suave de ponta a ponta”. O engenheiro francês fez sugestões quanto à rua do Rosário, à 1º de Março (atual Monsenhor Celso) e à Graciosa (atual Barão do Serro Azul). Ele sugeriu também arborizar o trecho hoje conhecido como avenida Luiz Xavier. Ficou claro que para a organização da cidade seriam necessárias algumas desapropriações.
De acordo com a pesquisadora Aparecida Vaz da Silva Bahls, “o trabalho efetuado por Taulois pôs em evidência alguns defeitos da urbanização de Curitiba. Entre eles a precariedade dos espaços livres. Além do Largo da Matriz, existiam apenas o Largo da Fonte (atual Praça Zacarias) e o Largo Lobo do Moura (atual Praça Santos Andrade)”. Para Fernando Botton, “Taulois estabeleceu um traçado de inspirações racionalistas. Usando de desenhos regulares e ângulos retos objetivou delinear quadras e ruas bastante retilíneas e ordenadas, se comparadas com as demais capitais de província da época”.
André de Souza Carvalho comenta, na pesquisa “Curitiba: imagem do planejamento ou planejamento da imagem?”, que, alguns anos após as sugestões de Taulois, a Câmara de Curitiba instituiu as Posturas Municipais de 1861, que deliberavam, entre outros assuntos, sobre o alinhamento das vias públicas e os parâmetros construtivos. “A linguagem técnica e o anteparo do saber de um engenheiro estarão por trás das ações", dizia o documento.
Plano Nova Corityba
A estrada de ferro Paranaguá-Curitiba, finalizada em 1885, foi decisiva para a urbanização de Curitiba. A escolha de um local para a estação cabia a Antonio Ferrucci, engenheiro-chefe da construção da estrada, que optou por um espaço na atual avenida Sete de Setembro. A decisão foi estratégica, pois posicionava o prédio a uma distância razoável do núcleo urbano, o que permitia a implantação de uma avenida larga ligando os dois pontos, aos moldes das avenidas propostas pelo francês Haussmann, que promoveu uma reforma urbana na Paris de 1850.
A rua da Lyberdade [atual Barão do Rio Branco] passou nos anos seguintes a sediar estabelecimentos comerciais e órgãos públicos como a Assembleia Legislativa [atual Palácio Rio Branco, sede da Câmara] e o Palácio do Governo [atual Museu da Imagem e do Som]. Essa rua serviu de base para que o engenheiro italiano Ernesto Guaita traçasse linhas paralelas e perpendiculares criando quadras no espaço vazio entre o núcleo e a estação. Tais quadras foram ocupadas de forma gradativa ao longo dos anos (Foto 7). Essa disposição ortogonal das ruas em direção à estação foi a primeira expansão organizada da cidade. O plano de Guaita ficou conhecido como “Nova Corityba”.
A ideia de zoneamento estava embrionária nesta planificação, haja vista que o Rebouças – bairro localizado na parte de trás da estação – tornou-se uma zona industrial. Entre as empresas que ali se instalaram, o pesquisador Humberto Fogaça, em seu trabalho “Plano de ação e projetos urbanos: Rebouças, Curitiba/PR”, apresentado na Universidade Federal de Santa Catarina, em 2011, destaca a Fábrica Paranaense de Phosphoros de Segurança (fundada em 1895); o engenho de erva mate de Nicolau Mäder (1898); a Fábrica de móveis Ritzmann & Irmãos (1905); a firma de Maurício Thá, composta por serraria e depósito no ramo de madeiras e construção civil (1910); e a Cervejaria Atlântica fundada por Carlos Henn e Henrique Jens, nas imediações da atual Getúlio Vargas (1912), entre outras. Após a inauguração da estrada de ferro e a implantação do Plano Nova Corityba, a população de Curitiba saltou de 24.500 habitantes em 1890 para 50 mil em 1900.
Na véspera da revisão da Lei de Zoneamento, a Câmara Municipal de Curitiba (CMC) publica uma reportagem especial, dividida em três capítulos, sobre as mudanças na cidade desde a sua fundação até os dias de hoje. Elaborada pelo jornalista João Cândido Martins, ela vai dos primeiros arruamentos, passando pelos Códigos de Postura do começo do século 20, às novidades mais recentes, nos Planos Diretores, que ordenam a cidade até hoje. Para ler em ordem, começe pela notícia Zoneamento de Curitiba: do arruamento ao bairro industrial (1720-1895), siga para Zoneamento de Curitiba: os Códigos de Posturas (1895-1960) e conclua a leitura com Zoneamento de Curitiba: surge o Plano Diretor (1960-2019).
Referências Bibliográficas
Bahls, Aparecida Vaz da Silva. O verde na metrópole: a evolução das praças e jardins em Curitiba (1885-1916). Dissertação apresentada para a obtenção do grau de Mestre no Curso de Pós-Graduação em História da UFPR. Curitiba, 1998.[Link aqui]
Carvalho, André de Souza. Curitiba: imagem do planejamento ou planejamento da imagem? Monografia apresentada como requisito à conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2008. [Link aqui]
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Martins, Romário. Terra e gente do Paraná. Coleção Farol do Saber. Curitiba, 1995. p. 229.
Medeiros, Humberto Fogaça de. Plano de ação e projetos urbanos: Rebouças, Curitiba/PR. Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade, da Universidade Federal de Santa Catarina, para obtenção do grau de Mestre em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade. Florianópolis, 2011. [Link aqui]
Pereira, Magnus Roberto de Mello. "Para o o bom regime da república: ouvidores e câmaras municipais no Brasil colonial". Revista Monumenta, vol. 3, n° 10. Curitiba, 2000. [Link aqui]
Pinto, Rui Cavallin. A rua XV de Novembro – Patrimônio Cultural do Estado. Memorial do Ministério Público do Paraná. [Link aqui]
Saboya, Renato T. de. Zoneamento e planos diretores (partes 1, 2 e 3). [Link aqui]
Salgado, Rodrigo Oliveira. De volta à Frankfurt: notas sobre a criação do zoneamento urbano. Revista Culturas Jurídicas. v. 4, n. 8. 2017. [Link aqui]
Santos, Antonio Cesar de Almeida (org.). Provimentos do ouvidor Pardinho para Curitiba e Paranaguá (1721). Revista Monumenta, volume 3, nº 10. Curitiba, 2000. [Link aqui]
Sêga, Rafael Augustus. Melhoramentos da capital: A reestruturação do quadro urbano de Curitiba durante a gestão do prefeito Cândido de Abreu (1913-1916). Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre. Curso de Pós-Graduação em História do Brasil, opção em História Social, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 1996. [Link aqui]
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