Terceiro setor denuncia precarização das políticas públicas de ação social
Irmã Anete Giordani, membro do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, reclamou da falta de investimentos nas políticas públicas voltadas à assistência social. (Foto: Carlos Costa/CMC)
“Somos como vasos capilares: se o sangue não circular, a carne começa a morrer. [Mas] ninguém nos dá importância. Talvez, se sairmos de onde estamos, alguma coisa morre.” A análise é de Irmã Anete Giordani, gestora do Centro de Assistência Social Divina Misericórdia e membro do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (Comtiba). Em audiência pública nesta quinta-feira (25), ela e outros representantes do terceiro setor revelaram à Câmara Municipal de Curitiba (CMC) os principais problemas enfrentados pelas organizações não governamentais (OSCs) que atuam na assistência social da cidade.
Com transmissão pelas redes sociais do Legislativo, e aberto à população, o debate cumpriu seu objetivo, que foi trazer temas urgentes em relação à atuação do terceiro setor de Curitiba. Todos os participantes, sem exceção, apontaram problemas que prejudicam a continuidade dos seus atendimentos. As falas foram ouvidas por representantes do Ministério Público do Paraná e da Secretaria da Justiça, Família e Trabalho (Sejuf). Apesar de convidada, a Fundação de Ação Social (FAS) não enviou representantes.
“Terceiro setor é o termo adotado para conceituar as instituições que não integram o estado e nem o mercado: compõem a sociedade civil organizada. É formado pelas pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que realizam atividades de interesse social, com o desenvolvimento de ações e atividades que buscam promover a inclusão social e a cidadania em diversas áreas da sociedade”, aponta a justificativa do requerimento para a realização da audiência (407.00021.2022).
Irmã Anete explicou que o terceiro setor representa a sociedade civil organizada e, em Curitiba, são mais de 9,3 mil organizações, que atendem cerca de 70 mil habitantes, “movimentando R$ 2,5 milhões em salários e remunerações”. Segundo ela, as OSCs são fundamentais para o monitoramento e avaliação das políticas públicas de estado. Apesar disso, elas correm o risco de fechar, por causa do “desmonte”, da burocracia” e da “excessiva rotatividade de equipes [da FAS], que seriam responsáveis por “erros internos, que têm gerado a devolução de recursos, por parte das organizações”.
Críticas endossadas
As reclamações da conselheira foram atestadas pela Rede das Instituições de Acolhimento (RIA) de Curitiba e da Região Metropolitana. Renan Gustavo Ferreira, secretário-geral da organização, alertou para o “caos no sistema municipal de acolhimento institucional”, que é “caro, complexo e executado por poucos” e estaria sendo negligenciado pela Fundação de Ação Social. Ele informou que a per capita paga pelo município ao terceiro setor é a menor entre as cidades da RMC.
“Há pelo menos 60 municípios paranaenses com per capita acima do nosso. O per capita é o valor do financiamento pago para a execução do serviço, que é de responsabilidade do Executivo, que dentro das suas limitações não consegue executar na centralidade, e repassa para as organizações da sociedade civil”, complementou. Para cada criança ou adolescente, a FAS repassa R$ 1.876 para casas lares e R$ 2 mil para abrigos. No entanto, na rede parceira, o custo fica e torno de R$ 4.500. Já para o Município, o valor não sairia menos que R$ 18 mil por assistido, segundo Renan Ferreira. “Os valores per capita são vergonhosamente baixos”, complementou Irmã Anete.
Orçamento e banco de dados
Para Danielle Dalavechia Silvestre, que também atua no terceiro setor e é conselheira do Comtiba, as entidades e instituições “estão aqui para parceirizar”, porém a governança da Fundação de Ação Social estaria voltada a “reduzir custos e terceirizar responsabilidades”, contribuindo para a precarização de um serviço que seria “obrigação e prioridade do Estado”. Ela pediu apoio da CMC no acesso ao fluxo de dados e estatísticas da FAS e denunciou que o Plano Municipal de Convivência Familiar e Comunitária, que prevê o acolhimento conjunto das crianças com suas mães, não está contemplado no novo edital do órgão.
Segundo a convidada, a situação pode ser combatida se o orçamento municipal para a assistência social for elevado. Hoje equivale a 2%, ou aproximadamente R$ 200 milhões, mas metade do montante, explicou Danielle Silvestre, é destinado à folha de pagamentos da FAS. Na sua avaliação, os investimentos na área deveriam compor, pelo menos, 3% do orçamento de Curitiba. Outro problema apontado seria o descumprimento das resoluções do Conselho Municipal de Assistência Social, também por parte da Fundação de Ação Social.
Apoio à aprendizagem
Na audiência pública, OSCs voltadas à capacitação de jovens fizeram críticas à Medida Provisória 1.116/2022 e o decreto-lei 1.061/2022, que alteraram a operacionalização da Lei da Aprendizagem (lei federal 10.097/2000). Segundo Jacheline Fabiane, gerente de Formação da Gerar, e Gilberto Carlos Muniz, da ABC Vida e coordenador do Fórum de Aprendizagem do Paraná, a MP tem provocado um desmonte da política pública da aprendizagem e, em dois anos, vai acabar com cerca de 400 mil vagas para adolescentes, jovens e pessoas com deficiência.
Jacheline Fabiane explicou que quem paga o aprendiz são as empresas médio e grande porte, que pela legislação, obrigatoriamente, precisam preencher 5% a 15% dos postos de trabalho com jovens aprendizes entre 14 e 24 anos.Hoje, Curitiba emprega 9,6 mil jovens graças à Lei da Aprendizagem, mas se a MP for aplicada ao pé da letra, a disponibilidade de vagas será reduzida, ainda mais considerando que a norma dispensa a empresa que cumpriu a cota por dois anos seguidos.
Essa Medida Provisória, continuou Gilberto Muniz, foi inclusive rechaçado por servidores do Ministério do Trabalho e da Previdência, que em manifesto do dia 4 de maio “abriam mão de seus cargos de auditores na área de aprendizagem”, porque não poderiam “endossar o desmonte desta política tão importante para a sociedade”. Uma política pública, reforçou Jacheline Fabiane, que deveria contribuir para a redução dos índices de desemprego, a evasão escolar e a violência. O assunto já havia sido abordado na CMC este ano, em uma Tribuna Livre.
O diz o MP e a Sejuf
Secretário de Justiça, Família e Trabalho do Paraná, Rogério Carboni acompanhou parte da audiência pública e elogiou o terceiro setor, responsável, na sua avaliação, por ajudar o Poder Público a fazer “frente às demandas”. “APAEs, APMIs e outras associações e entidades [cuidam] tão bem das crianças e adolescentes. Sem essas entidades, muitas pessoas estariam ao relento, ao desamparado: crianças, mulheres, idosos, tantos outros”, assegurou o gestor. Ele ainda ponderou ser necessário buscar o “razoável” em relação ao funcionamento destas entidades, porque exigências burocráticas do Poder Público e dos conselhos em geral impedem o trabalho delas.
Do outro lado, Karina Anastácio Faria de Moura Cordeiro, promotora de Justiça das Promotorias das Fundações e do Terceiro Setor, do MP-PR, endossou que as OSCs “atuam no vácuo estatal” e mesmo recebendo imunidade tributária, “devolvem quatro vezes mais à sociedade, em serviços”. É através delas, frisou, que “sociedade e Estado conseguem dar dignidade à população”. Por fim, orientou às entidades ali presentes que a promotoria está à disposição para receber denúncias e, se necessário, encaminhá-las para outras unidades do MP-PR, em casos específicos.
Maria Alice Erthal, presidente da FAS, foi convidada a participar, mas em razão de compromissos, não compareceu. O órgão não enviou representantes. A audiência pública foi coordenada pelo gabinete parlamentar do vereador Dalton Borba (PDT), que ouviu todas as demandas apresentadas pelo terceiro setor e comunicou que irá solicitar informações oficiais ao Município sobre cada problema apontado. Sua ideia, adiantou, é levantar um dossiê sobre o acolhimento institucional.
“Nós podemos, sim, crescer nas nossas atividades, desenvolver, obter mais representatividade dentro da daquilo que a gente faz. Mas é preciso que a gente reúna as nossas forças. Todos os dados e informações que os diferentes setores trouxeram são importantes. Coloco meu gabinete como porta de entrada nesta Casa, para que todas as informações, dados e sugestões sejam encaminhadas. Efetivamente estamos montando um estudo detalhado sobre o terceiro setor”, finalizou o parlamentar.
Dentre diversas representações presentes no debate, destacam-se Virgínia Martins, diretora pedagógica do Instituto Play for Chance, que atua junto à comunidade do bairro Cajuru; e Gustavo Adolpho Leal Brandão, coordenador da Rede do Terceiro Setor. Os vereadores Herivelto Oliveira (Cidadania) e Marcos Vieira (PDT) também estiveram na audiência pública.
=> Clique aqui para ver todas as imagens do debate, que aconteceu no Palácio Rio Branco.
Audiências públicas
A proposição de audiências públicas, cursos e seminários pelos vereadores depende da aprovação de requerimento em plenário, em votação simbólica. O objetivo da reunião com os cidadãos, órgãos e entidades públicas e civis é instruir matérias legislativas ou tratar de assuntos de interesse público. Caso a atividade ocorra fora da Câmara Municipal de Curitiba (CMC), a liberação de servidores cabe à Comissão Executiva – formada pelo presidente, o primeiro-secretário e o segundo-secretário da Casa. No caso das comissões temporárias ou permanentes, a realização de audiências públicas, cursos ou seminários é deliberada pelo colegiado e despachada pelo presidente do Legislativo.
A exceção são as audiências públicas para a discussão das Diretrizes Orçamentárias (LDO), do Orçamento Anual (LOA) e do Plano Plurianual, conduzidas pela Comissão de Economia, Finanças e Fiscalização. Por se tratarem de etapas legais para a tramitação dos projetos, sua realização não precisa passar pelo crivo dos membros do colegiado. Também cabe ao colegiado de Economia convocar as audiências quadrimestrais de prestação de contas da Prefeitura de Curitiba e da Câmara Municipal. À Comissão de Saúde, Bem-Estar Social e Esporte compete a condução das audiências quadrimestrais para balanço do Sistema Único de Saúde (SUS) da capital. Ambas têm respaldo legal e independem de aprovação dos membros dos colegiados.
Clique aqui para saber mais sobre as audiências públicas já realizadas pela CMC em 2022.
Restrições eleitorais
Em respeito à legislação eleitoral, a comunicação institucional da CMC será controlada editorialmente até o dia 2 de outubro. Nesse período, não serão divulgadas informações que possam caracterizar uso promocional de candidato, fotografias individuais dos parlamentares e declarações relacionadas a partidos políticos, entre outros cuidados. As referências nominais serão reduzidas ao mínimo razoável, de forma a evitar somente a descaracterização do debate legislativo.
Ainda que a Câmara de Curitiba já respeite o princípio constitucional da impessoalidade, há dez anos, na sua divulgação do Poder Legislativo, publicando somente as notícias dos fatos com vínculo institucional e com interesse público, esses cuidados são redobrados durante o período eleitoral. A cobertura jornalística dos atos do Legislativo será mantida, sem interrupção dos serviços de utilidade pública e de transparência pública, porém com condicionantes (saiba mais).
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