Primeira Ouvidoria do Brasil foi criada em Curitiba há 29 anos
Curitiba fez história. A cidade criou, no dia 24 de março de 1986, a primeira Ouvidoria pública do país, modelo também para a América Latina. Para divulgar o serviço inédito, em funcionamento no saguão do Palácio 29 de Março, sede da prefeitura, um cartaz curioso circulava na capital. Depois de 21 anos de uma ditadura militar, uma orelha e um cotonete chamavam o cidadão a apresentar reclamações, denúncias e sugestões à administração pública municipal.
“A ideia era dizer à população que estávamos com os ouvidos atentos aos problemas da cidade”, explica o vereador Paulo Salamuni (PV), um dos responsáveis pela concepção e instalação da Ouvidoria. Os outros dois autores pelo projeto-piloto foram os também advogados Manoel Eduardo Alves Camargo e Gomes, o primeiro ouvidor-geral de Curitiba, e Luis Miguel Justo Silva, que o sucedeu à frente do órgão.
A Ouvidoria foi criada pelo então prefeito e atual senador Roberto Requião (PMDB), por meio do decreto 215/1986, e encerrada quatro anos depois, na gestão de Jaime Lerner. Em artigo publicado no livro “A Ouvidoria na esfera pública brasileira”, Gomes afirma que o chefe do Executivo extinguiu o órgão por ele ter sido contemplado na Lei Orgânica do Município, promulgada em 1990, “sob o pressuposto da vinculação ao Poder Legislativo”. O advogado Alcides José Branco foi o último ouvidor de Curitiba. Ele faleceu em 2007.
A imprensa acompanhou a movimentação desde o anúncio do projeto, em janeiro de 1986, inclusive com a cobertura em veículos nacionais. A “Gazeta Mercantil” noticiou que o prefeito planejava criar um “pronto-socorro jurídico”, iniciativa a princípio chamada de “SOS Justiça”. Foi no dia 14 fevereiro que se começou a falar na Ouvidoria. “A Prefeitura de Curitiba pretende implantar um órgão semelhante ao instituto (de origem sueca) ombudsman”, disse “O Estado do Paraná”.
“Essa Ouvidoria-Geral receberá denúncias e reclamações dos munícipes que tiverem seus interesses lesados pela administração pública municipal”, adiantou a “Folha de Curitiba”. A “Tribuna do Paraná” explicou: “Não vai ser uma central de pedidos e sim de denúncias e reclamações”. “Ele (o ouvidor) promete dar solução aos cidadãos que o procurarem com uma reclamação justa em apenas 72 horas”, disse a revista “Veja”, em edição de fevereiro de 1986.
Já para o jornalista Luiz Geraldo Mazza, em coluna publicada no “Correio de Notícias”, “o ideal seria que o ombudsman fosse uma criação não formalizada e que todo cidadão se achasse investido das prerrogativas de tornar mais flexível o acesso ao poder”. No mesmo jornal, o jornalista Renato Schaitza criticou a iniciativa, por “usurpar prerrogativa oferecida aos representantes eleitos pela comunidade (vereadores)”. Entre críticas e elogios, a concepção e início das atividades também repercutiram no “O Estado de São Paulo”, no “Jornal do Brasil”, na “Gazeta do Povo”, no “Jornal do Estado”, no “Indústria e Comércio”, na “Folha de Londrina” e no “Paraná em Páginas”, entre outros.
Professor de Direito Público da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e apontado como referência em ouvidorias públicas, Gomes relata dificuldades para elaborar o projeto: “Não tinha internet naquela época, e a bibliografia sobre o ombudsman era estrangeira. Fomos pedir auxílio às embaixadas”. Procurador municipal, o segundo ouvidor-geral destaca que a estrutura era enxuta. “A Ouvidoria deve dar o exemplo, de que ela pode ser eficiente com um número restrito de funcionários competentes. Senão não há legitimidade para fazer as cobranças”, defende.
“O acesso ao ouvidor era muito fácil”, recorda Salamuni, que em 2014, na presidência da Câmara Municipal de Curitiba, deu início ao processo de eleição do ouvidor. “A preocupação era viabilizar a participação do cidadão, em um momento em que a cultura administrativa era de pouca acessibilidade, em consequência da ditadura. A ideia era justamente o relacionamento o mais próximo possível. Também atuavam cerca de quatro advogados (entre eles Salamuni e Silva) e duas secretárias”, contextualiza Gomes.
A Central 156 era vinculada à Ouvidoria. O reclamante preenchia um formulário e, no papel-carbono, era feita a cópia para a autoridade citada. “O prazo de 48 horas para a resposta era rigorosamente cumprido, sob pena de responsabilidade”, ressalta o professor. Pela configuração da Ouvidoria atual, as informações deverão ser prestadas em 15 dias úteis.
“Íamos aos meios de comunicação, que tinham livre acesso aos processos. A transparência nos legitimava”, reforça Silva. Conforme balanço dos primeiros onze meses de atividades do projeto-piloto, foram protocoladas cerca de 1,4 mil demandas, que resultaram na abertura de 800 processos, sendo a maioria, 291, referente à área de urbanismo. Conforme artigo publicado na Revista de Direito Administrativo, em 1986, 613 processos foram solucionados, quatro decretos tiveram a revogação proposta e mais de 20 sindicâncias administrativas foram instauradas.
Silva se lembra de investigações na Companhia de Habitação de Curitiba (Cohab-CT), por aplicação indevida de recursos. Mas, além das denúncias e reclamações, ele alerta a outra função do ouvidor: “Uma das atribuições mais importantes, se não a mais importante, é propor à administração pública procedimentos mais ágeis. Desburocratizar, oferecer respostas mais rápidas à população. Ele também consegue mapear as reivindicações, levantar o que cada bairro precisa”.
Casos curiosos
Foi a partir de uma denúncia que a Ouvidoria passou a funcionar, em novembro de 1986, no número 22 da rua Mateus Leme, em frente à fachada lateral da Igreja da Ordem. Localizado no Centro Histórico de Curitiba e cadastrado como Unidade de Interesse de Preservação (UIP), o imóvel hoje abriga a Casa do Artesanato. Apesar de um decreto, de 1981, que o cedia à Secretaria da Indústria e Comércio, o local era usado por particulares. “Durante todos estes anos, o Restaurante Thapioca jamais pagou aluguel, imposto ou taxas ao município”, publicou a imprensa local.
Entre as investigações da Ouvidoria, Gomes destaca a “máfia dos cemitérios”. O caso envolvia a venda de lotes no Cemitério Municipal São Francisco de Paula, com anúncios em jornais de grande circulação. “Fomos atrás do que estava acontecendo, através dos próprios anúncios. Comunicamos a Auditoria do Município e interditamos a Divisão de Cemitérios. Foram abertas várias sindicâncias, que resultaram em demissões”, conta.
A “gangue do alvará” também mobilizou a Ouvidoria de Curitiba. O processo 82, por exemplo, resultou de um recurso da empresa Johnson & Johnson contra o indeferimento do pedido de instalação de um escritório numa zona residencial. No mesmo endereço, outra empresa havia sido autorizada a funcionar. O funcionário do Departamento de Urbanismo responsável pelo documento, no entanto, alegou que sua assinatura havia sido falsificada.
Em outra situação, a prefeitura demitiu um funcionário por fraude. A sindicância sugerida por Gomes confirmou que o servidor municipal havia falsificado a assinatura de um engenheiro numa vistoria de conclusão de obra. Foi a Ouvidoria que atendeu a sugestão popular à duplicação da Manoel Ribas, que seria feita, via recursos do governo estadual, em apenas um trecho. “Fizemos audiências públicas com os moradores da região e encaminhamos diversas sugestões ao Ippuc (Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba). Por fim, o projeto foi modificado e toda a avenida foi contemplada”, diz o primeiro ouvidor.
Também eram realizados mutirões nas administrações regionais, com assistência jurídica à população. Havia, por exemplo, a emissão gratuita de documentos, como certidões de nascimento, casamento e óbito. Em setembro de 1986, os trabalhos da Ouvidoria foram noticiados pela revista “Isto É”, que ilustrou a atuação do órgão com a mediação em uma briga de vizinhos, no bairro Campo Comprido.
“Resolvíamos, também, problemas cotidianos. Recordo de uma médica que se acidentou devido a um buraco na via e nos procurou. Ela reclamou e abrimos um procedimento”, explica Salamuni. Ele recorda de histórias curiosas, ocorridas quando a Ouvidoria funcionava no saguão da prefeitura, perto do setor de impostos. “Teve uma que entrou para o folclore da Ouvidoria. Tinha um servidor que trabalhava com uma gaiola sobre o balcão de atendimento. Ele cutucava o pássaro com a caneta, brincando, e o animal cantava. Só que uma senhora ficou indignada, fez uma denúncia à Ouvidoria de maus-tratos ao pássaro”, conta. A solução foi retirar o animal dali. Salamuni relata outra situação, de um grupo que foi fazer uma reivindicação sobre regularização fundiária. “Uma senhora, humilde, levou em um pote de vidro um bicho, para mostrar o que havia no local em que morava”, recorda. “Só que ele escapou e alguém disse que era um escorpião. O saguão da prefeitura foi evacuado, mas não acharam nada”, afirma o parlamentar.
Novo exemplo ao país
Gomes, Silva e Salamuni concordam que o modelo de Ouvidoria que está sendo implantado na cidade, com vinculação à Câmara Municipal, é o ideal. “Será o segundo exemplo inédito, nessa área, que Curitiba oferecerá ao país”, afirma o primeiro ouvidor. Para o vereador, será uma “honra ao Parlamento”.
“Não há sobreposição de funções. O vereador também é um ouvidor da população, mas tem outras atribuições, como legislar. Já o ouvidor terá apenas essa obrigação, e os parlamentares também poderão procurá-lo”, avalia Salamuni. “Qual o preço da liberdade, da democracia, da transparência?”, questiona. “Espero que a iniciativa tenha êxito. Controle e transparência são necessidades do cidadão”, pontua Silva.
“O ouvidor defende a posição do cidadão, é um instrumento para fortalecer a cidadania e a Câmara Municipal. O próprio vereador poderá encaminhar reclamações”, completa Gomes. De acordo com o professor, na Inglaterra o ouvidor só recebe demandas do Parlamento. Em entrevista publicada em 1989, o advogado Alcides José Branco, último ouvidor de Curitiba, já falecido, refutou que as atividades interferissem na atividade do Legislativo: “Funciona, isto sim, como órgão de apoio, acionando reivindicações dos representantes daquele Poder”.
Questionado sobre as qualidades do ouvidor, Silva opina: “Além da reputação ilibada, é indispensável ter conhecimentos em direito administrativo e gestão pública. Saber como funciona o transporte coletivo, o planejamento urbano, as normas para o uso do solo, questões ambientais, saneamento e a prestação de serviços do Município à população, como a saúde e a educação”.
Ombudsman? Não.
A palavra ombudsman, explica o professor Manoel Eduardo Alves Camargo e Gomes, vem de representante. A figura foi instituída, em 1713, pelo rei da Suécia, Carlos XII. “Como ele se ausentava muito tempo do país, em uma das situações por 12 anos, deixou alguém para tomar conta. Ao "hogsta ombudsmänem" (supremo representante do rei) competia vigiar os funcionários do governo na execução das ordens e leis”, afirma. “Em 1809, a Constituição sueca o converteu em representante do Parlamento.”
No Brasil, o termo mais comum é o de ouvidor, adotado a partir da experiência curitibana. Segundo o professor, a ideia era que a nomenclatura não se confundisse com outras instituições. A Inglaterra possui o comissário parlamentar, Portugal o provedor de justiça, a França o mediador do povo e a Espanha o defensor do povo.
Gomes explica que, na elaboração do projeto, entendeu-se que o termo defensor do povo, por exemplo, daria o entendimento de alguém ligado ao Ministério Público. O de corregedor, com as prerrogativas dos Tribunais. “Tivemos, então, a ideia de retomar o ouvidor do Brasil Colonial, que era um juiz. Apesar de a função ser completamente oposta, a palavra dá a ideia de ouvir a população. Ser o advogado do povo”, justifica.
De Requião a Fruet
Idealizador da primeira Ouvidoria do país, Requião pondera que, na época, a população não tinha acesso aos canais digitais, que agilizam a comunicação. “Ela abriu um canal direto com o cidadão, que às vezes não sabe a quem procurar para resolver um problema. E a Ouvidoria servia para ouvir denúncias, sugestões, reclamações e elogios. Era uma forma de estarmos presentes em cada bairro”, diz.
O senador destaca que também implantou, em 1991, no primeiro mandato como governador, a Ouvidoria-Geral do Paraná. “A Ouvidoria é o canal que a população tem para se manifestar. Precisa ter uma estrutura. Uma equipe. Uma dotação orçamentária. Senão como vai trabalhar?”, opina. Ele também alerta que, vinculado ao Executivo ou ao Legislativo, o órgão precisa ter “plena autonomia, sem interferências políticas ou de qualquer ordem”.
Na opinião do prefeito Gustavo Fruet, a retomada da Ouvidoria é positiva. Ele afirma que a discussão cabe ao Legislativo. “Estou acompanhando como cidadão, respeitando aqueles que têm mandato popular e que são também ouvidores de Curitiba”, disse. Para o chefe do Executivo, a independência é fundamental para a legitimidade do órgão.
“Quanto mais espaço e diálogo com a cidade, canais para a população levar suas reclamações, críticas e denúncias, é evidente que ganham a atividade pública e o Executivo”, avalia. O ex-prefeito de Curitiba e ex-governador do Paraná Jaime Lerner foi procurado pela reportagem, mas sua assessoria informou por e-mail que ele não poderia “contribuir desta vez, pelo fato de não estar lembrado das questões solicitadas”.
Por Fernanda Foggiato – Jornalista da Diretoria de Comunicação da Câmara Municipal de Curitiba.
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Referências Bibliográficas:
Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais. A Relevância da Ouvidoria do Povo. 1989. Disponível em: http://dspace.almg.gov.br/xmlui/handle/11037/2553
Gomes, Manoel Eduardo Alves Camargo e. Do instituto do ombudsman à construção das Ouvidorias públicas no Brasil. Página 49-124. In: Lyra, Rubens Pinto (organização). A Ouvidoria na esfera pública brasileira. Editora Universitária da UFPB e Editora Universitária UFPR. João Pessoa, Curitiba. 2000.
Lei Orgânica do Município. Disponível em: https://www.leismunicipais.com.br/lei-organica-curitiba-pr
Ouvidoria Municipal de Curitiba. Recortes. Janeiro de 1986 a abril de 1987.
Reprodução do texto autorizada mediante citação da Câmara Municipal de Curitiba