Participação popular na política III: Curitiba inspira “comícios-monstro” das Diretas Já

por Fernanda Foggiato | Revisão: Ricardo Marques — publicado 03/10/2024 11h00, última modificação 03/10/2024 12h48
Mobilização pelo voto direto encerra série especial da CMC sobre os três momentos históricos decisivos para a política de Curitiba, do Paraná e do Brasil.
Participação popular na política III: Curitiba inspira “comícios-monstro” das Diretas Já

Manifestação de Curitiba, em janeiro de 1984, inspirou “comícios-monstro” pelo voto direto a presidente do Brasil. (Arte: Diogo Fukoshima/CMC)

Curitiba, janeiro de 1984. Faixas, panfletos e cartazes convocam a população para ir às ruas em defesa da democracia. “Eu quero votar pra presidente. Compareça dia 12, às 18h30, na Boca Maldita”, diziam as faixas colocadas no local da manifestação. O povo atendeu ao chamado e, mais uma vez, a participação popular na política foi decisiva. 

Cerca de 50 mil pessoas compareceram, na noite daquela quinta-feira, 12 de janeiro de 1984, à manifestação que entraria para a história do Brasil como o primeiro “megacomicío” pela retomada das eleições diretas para a Presidência da República. Na terceira e última parte da série especial sobre os marcos da participação popular para definir os rumos da política da cidade, do Paraná e do Brasil, a Câmara Municipal de Curitiba (CMC) relembra a mobilização dos curitibanos nas Diretas Já.

“O objetivo central do movimento pelas diretas não foi alcançado de imediato. No entanto, a campanha contribuiu indiscutivelmente para a desarticulação do regime [militar] e, com ela, ficou claro que o povo não aceitaria outro sistema se não a democracia”, destaca a estudante Natália Garcia Krainski, pesquisadora-bolsista do convênio entre a Casa Legislativa e a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Ela é a autora do artigo “Câmara Municipal e a população de Curitiba em prol das Diretas Já (1984)”

No último 31 de março, o golpe que deu início ao regime militar completou 60 anos. “Rebelião armada em Minas exige a deposição de Jango”, estampou o jornal “Última Hora”, em 1º de abril de 1964, sobre os acontecimentos da véspera com o presidente João Goulart. O Ato Institucional nº 1 (AI-1), determinando a eleição indireta à Presidência e à Vice-Presidência da República, entre outros pontos, foi decretado em 9 de abril. O AI-3 tornou indiretas as eleições para governador, vice-governador, prefeito e vice-prefeito, em 5 de fevereiro de 1966. 

Após 1964, o povo brasileiro foi privado de exercer um direito básico de cidadania: escolher seus governantes democraticamente”, pontua Natália. “O poder concentrava-se nas mãos do Executivo; as câmaras municipais, que eram por demais dependentes do centro, acabavam por exercer, na verdade, um papel de homologadoras daquilo que era determinado, não detinham autoridade real."

"E dessa forma continuou sendo, pelo menos até o fim da década de 1970 e o começo da década de 1980, quando se inicia um processo de distensão política a partir do governo de Ernesto Geisel", explica ela, quando começa a abertura política “lenta, gradual e segura”. Em 1979, acaba o bipartidarismo e é sancionada a Lei da Anistia, que permitiu o retorno de cidadãos exilados por divergências políticas.  

Em 1982, voltam a ser realizadas eleições diretas para os cargos de senador, deputado federal, deputado estadual e, à exceção das capitais, para prefeito e vice-prefeito. No caso dos vereadores, o voto direto já havia sido mantido. As câmaras municipais chegaram a ter eleições adiadas e a duração de legislaturas prorrogadas, mas não foram fechadas durante o regime. 

“Com a chuva, o curitibano ficou em casa. Hoje, sai para votar”, escreveu o jornal paranaense “Diário da Tarde” sobre as eleições de 1982. “Este 15 de novembro é dos mais importantes para a vida nacional nos últimos anos, [...] pela primeira vez milhares de eleitores irão votar para governadores de Estado, o que aconteceu pela última vez em 1965”, destacou. Segundo a publicação, as eleições foram tranquilas, “salvo um ou outro ‘entrevero’ entre cabos eleitorais, coisa normal”.

No entanto, a pesquisadora pondera que a abertura política "supostamente objetivava à redemocratização, mas, na prática, intencionava somente apaziguar a população que se encontrava descontente com o governo, principalmente devido à crise econômica que atingiria novo patamar nos anos 80, conhecidos como a década perdida”. 

Emenda Dante de Oliveira e o começo dos “megacomícios” 

O movimento Diretas Já traz avanços significativos à democracia do país. A faísca da campanha que tomou as ruas, Brasil afora, foi o protocolo, em março de 1983, da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 5, prevendo a volta das eleições diretas. A proposta tornou-se conhecida como Emenda Dante de Oliveira, nome do deputado federal do Mato Grosso, falecido em 2006, que apresentou a PEC.

O movimento pela retomada das eleições diretas, prossegue Natália, foi “heterogêneo, com indivíduos dos mais diversos grupos da sociedade civil”.Os comícios pelas diretas foram os meios pelos quais o povo se unia para expressar sua indignação e apresentar suas reivindicações. Eram verdadeiras festas cívicas, onde se reuniam artistas, jornalistas, políticos, estudantes, religiosos, que juntos entoavam palavras de ordem”, reforça a estudante da PUCPR.

Além da mobilização popular, os partidos políticos de oposição ao regime formaram o Comitê Nacional Partidário Pró-Diretas. Goiânia (GO) foi palco do primeiro comício, em 15 de junho de 1983, com a participação de 15 mil pessoas. Nos meses seguintes, o povo vai às ruas em outras cidades do país.

Curitiba faz a história, não espera acontecer

“No dia 12 de janeiro de 1984, o comício realizado na Boca Maldita reuniu 50 mil pessoas, um público significativamente maior do que o dos precedentes, e serviu de exemplo para os próximos. Nos meses seguintes, até a data da votação da emenda, em 25 de abril, ocorreram diversos comícios, megacomícios, e até mesmo 'comícios-monstro'”, explica a pesquisadora-bolsista da Câmara de Curitiba. 

Um dia antes do primeiro comício em Curitiba, a Boca Maldita, tradicional ponto de debate da política local e de manifestações, chegou a receber uma “urna gigante” para simular os votos à Presidência. Os preparativos para a mobilização ganharam as páginas da imprensa nacional.

Matéria publicada no “Jornal do Brasil”, à época um dos maiores do país, informou que as cédulas distribuídas à população traziam a frase “Eu quero votar para presidente” e um espaço em branco para que a pessoa indicasse o nome do candidato. Houve até fila para participar da votação simulada na Boca Maldita. 

"Temos de dar uma clara, nítida demonstração de que a população está reivindicando a eleição direta para presidente. E só faremos isso com o povo na praça”, disse à reportagem do jornal carioca o então prefeito de Curitiba, Maurício Fruet (1939-1998). Responsável pela articulação com os prefeitos da Região Metropolitana, ele estimava um público de 15 mil pessoas.

“O senador Alvaro Dias garantiu que pelo menos 200 ônibus, cedidos por empresários, vão transportar gratuitamente quem estiver interessado em participar da concentração. Setenta desses ônibus virão de cidades do interior do estado”, continua a reportagem do “Jornal do Brasil”.

Curitiba faz história, não espera acontecer”, relembrou, em 1989, uma edição comemorativa do jornal paranaense “Correio de Notícias”. “Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido. O primeiro artigo da Constituição brasileira, esquecido pelos governos militares, letra morta, começou a ser revivido no dia 12 de janeiro de 1984, em Curitiba, [...] foi o começo de um movimento que queria mudar a face do país.”

A partir do comício de Curitiba - um comício histórico que reuniu mais de 50 mil pessoas, nos cálculos mais modestos - as praças públicas de todo o Brasil assistiriam a uma invasão popular sem precedentes. Amordaçados durante 21 anos, as vozes de milhões de brasileiros exigiam o direito de eleger seu presidente”, acrescentou o jornal paranaense. 

“O ano de 1984, um ano de esperança, ainda traria muitas surpresas. E uma constatação: o povo já não aceitava ser um observador passivo do processo político. Exigia participação e mudanças. Queria voz e voto, o papel de protagonista vivo da história. O exemplo de Curitiba frutificou e ajudou o País a iniciar uma caminhada irreversível rumo à transição democrática”, avaliou, também, o “Correio de Notícias”.

Depois do megacomício de Curitiba, as manifestações Brasil afora ganham volume. O maior ato aconteceu em São Paulo (SP), na Praça da Sé, no dia 16 de abril. Com um público estimado em 1,5 milhão de pessoas, o ato tornou-se “a maior manifestação que o país já vira”.

“Um comício-monstro”: emenda é rejeitada e o povo volta às ruas

“O povo, no entanto, iria se frustrar novamente”, relatou o “Correio de Notícias”. Há 40 anos, no dia 25 de abril de 1984, por apenas 22 votos, a Câmara dos Deputados rejeitou a Emenda Dante de Oliveira. A proposta, para restabelecer a eleição direta à Presidência da República, teve 298 votos a favor, 65 contra e 3 abstenções. Além disso, 112 deputados federais não compareceram à votação.

O boicote teria acontecido pelo temor ao regime. A matéria precisava de pelo menos 320 votos, de um total de 479, para ser encaminhada para a deliberação do Senado.

A PEC 5/1983 é rejeitada, mas o povo não desanima. Nova votação para uma emenda constitucional que restauraria as eleições diretas, proposta pelo próprio presidente militar, João Figueiredo, estava prevista para o dia 27 de junho de 1984, o que acarretou mais manifestações populares visando a pressionar o Congresso Nacional”, explica Natália.

De qualquer forma, nós não temos saída: precisamos ir ao comício. Gritar pelas diretas é repetir em coro o que o povo pensa”, escreveu o jornalista Luiz Geraldo Mazza no “Correio de Notícias”, em 21 de junho de 1984. Alguns dias depois, o povo retornaria em peso à Boca Maldita. O colunista político do jornal paranaense, que faleceu no último dia 10, aos 93 anos de idade, pontuou que Curitiba reabriria “a campanha nacional pelas eleições diretas, num comício que se mostra desde já decisivo para as intenções das oposições”. 

Um comício-monstro, se o tempo ajudar.” Essa era a expectativa de Curitiba, revelada nas páginas do “Correio de Notícias”, na edição de 24 de junho de 1984. Mesmo com “o objetivo mais difícil de alcançar”, de acordo com a reportagem, “a esperança não morreu” após o boicote à Emenda Dante de Oliveira. 

“Amanhã, 25 de junho, na mesma Boca Maldita, e com torcida para que o tempo esteja bom e a temperatura agradável, a história se repete. O Paraná dará novamente a largada para o segundo round da mobilização pelas eleições diretas”, afirmou o jornal. “Tudo que tinha de ser feito, já o foi. Cartazes foram espalhados por toda a cidade, panfletos distribuídos por todos os cantos. Venda de camisetas e botões na Boca Maldita. Minicomícios se espalharam por clubes e associações de bairros, alguns não passando de simples reuniões, mas reunindo muita gente.”

Com a participação confirmada de políticos de peso e artistas, a meta dos organizadores era superar o público do megacomício do dia 12 de janeiro. Para mobilizar a população, vereadores de diferentes partidos promoveram comícios pelos bairros da capital e planejaram caravanas. Na Câmara de Curitiba, também não faltaram pronunciamentos sobre a manifestação. 

Valeu, Curitiba”, trouxe a capa do “Correio de Notícias”, no dia seguinte à manifestação. “E Curitiba deu a nova arrancada. Curitiba repetiu a dose. Cinquenta mil pessoas tomaram a Boca Maldita, se expandiram pela rua XV, avançaram pela Voluntários da Pátria, se comprimiram para enxergar o palanque e gritar em uníssono: ‘diretas, já’”, celebrava o jornal.

Só que o desejo da população foi, mais uma vez, adiado. “Mesmo com tamanha mobilização, contudo, as esperanças dos brasileiros foram novamente esmagadas, pois, após o adiamento da votação para o dia 28 de junho, o presidente Figueiredo retira a emenda, que nem chega a ser votada”, explica a pesquisadora Natália Garcia Krainski.

Após mobilização do povo, democracia é restaurada no Brasil

A mobilização popular surte efeito e a escolha do mineiro Tancredo de Almeida Neves pelos deputados federais e senadores do Colégio Eleitoral, dia 15 de janeiro de 1985, sela o fim do regime militar. Depois de um hiato de quase 21 anos, o Brasil teria seu primeiro presidente civil.

Tancredo Neves recebeu 480 votos do Colégio Eleitoral, contra 180 conquistados por Paulo Maluf e 26 abstenções. Depois de mandatos na Câmara dos Deputados e no Senado, Neves havia sido eleito governador de Minas Gerais, nas eleições diretas de 1982. Advogado, era de oposição ao regime, mas considerado um “conciliador nato”.

Tancredo Neves tomaria posse em 15 de março daquele ano, mas foi hospitalizado, um dia antes, em estado grave, em função de um tumor. Ele morreu no dia 21 de abril, após diversas cirurgias. O vice José Sarney, com quem o político mineiro compunha a chapa da Aliança Democrática, foi quem assumiu o cargo. A data de sua posse, 15 de março, é considerada o fim do regime militar no Brasil

No dia 15 de novembro de 1985, os eleitores das capitais voltaram a eleger, de forma direta, o prefeito e o vice-prefeito de seus Municípios. Em 5 de outubro de 1988, a nova Constituição foi promulgada pela Assembleia Constituinte Chamada de Constituição Cidadã, ela consolidou o processo de redemocratização e é considerada um símbolo do começo da Nova República. 

as eleições diretas à Presidência, pauta da Diretas Já, só voltaram a ser realizadas em 1989. Depois de 29 anos sem o voto direto para o cargo mais importante do país, o eleito no segundo turno, dia 17 de dezembro daquele ano, foi o alagoano Fernando Collor de Mello. Em 1992, ele foi afastado do poder e renunciou ao mandato.  

A campanha das Diretas Já deixa uma marca na política brasileira que jamais deve ser esquecida, demonstrando a importância do direito de escolha da população e de como tal direito é frágil, precisando ser valorizado”, avalia Natália. “Além disso, a união dos mais variados grupos sociais, inclusive de políticos pertencentes a partidos com posicionamentos divergentes, também mostra a relevância desse movimento”, finaliza a pesquisadora, autora do artigo sobre o papel da população e da Câmara Municipal de Curitiba no processo de redemocratização do Brasil.

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