Participação popular na política I: três marcos decisivos na história de Curitiba
Fundação da Câmara Municipal e de Curitiba são tema da primeira parte da série especial sobre luta popular e democracia. (Arte: Diogo Fukushima/CMC)
— Este dito povo tão desamparado de governo e disciplina da justiça. E atendendo nós, que ao diante será pior por não haver a dita justiça na dita povoação.
— Não há um só curitibano que não deseje ardentemente a separação de S. Paulo.
— Eu quero votar para presidente.
Do Brasil Colônia à República, três momentos históricos da mobilização popular definiram os rumos não só da política curitibana, mas também da democracia no Paraná e no Brasil. Descubra, em série de reportagens especiais da Câmara Municipal de Curitiba (CMC), como a luta da população foi decisiva para assegurar, inclusive, o direito ao voto nas eleições deste domingo (6), quando serão definidos os vereadores, prefeito e vice-prefeito.
Caso o povoado de faiscadores (mineradores de ouro) não tivesse exigido a criação da justiça, no século 17, a Câmara e a Prefeitura de Curitiba sequer existiriam. Se não fosse o movimento popular pela emancipação da 5ª Comarca de São Paulo, na primeira metade do século 19, os paranaenses ainda poderiam ser chamados de “paulistas do sul”. Pulando para a República, foi graças à manifestação na capital do estado, em 1984, que surgiram os megacomícios das Diretas Já.
Dividida em três partes, a série especial de reportagens faz parte do Nossa Memória, trabalho de resgate da história do Poder Legislativo e da cidade de Curitiba. O levantamento foi realizado pela Diretoria de Comunicação Social e pelas pesquisadoras-bolsistas da CMC, a partir de convênio da instituição com o curso de bacharelado em História da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
“Consideramos as principais fases da História Brasileira e elencamos os eventos que pensamos ser emblemáticos e que demonstrassem a participação popular na cidade de Curitiba ao longo dos séculos”, pontua Natália Garcia Kraiski, uma das três pesquisadoras do convênio da CMC com a PUCPR. “A fundação da Câmara de Curitiba, no período colonial, foi uma demanda da própria população; o desejo pela Emancipação da Província do Paraná, no Império, mobilizou abaixo-assinados dos moradores de Curitiba e de outras vilas; e, por fim, o movimento pelas Diretas Já, no período republicano, no qual a população curitibana, bem como de todo o Brasil, exigiu o retorno da democracia”, resume ela.
“Ao longo da história da humanidade, raras vezes a população comum teve alguma forma de participação. Somente nos últimos séculos, algo em torno de 250 anos, é que, de fato, as pessoas puderam escolher os rumos do país em que viviam”, pondera a também pesquisadora Lorena Elaine Porto. Ela acrescenta que o levantamento histórico “teve por objetivo trazer à luz a ação da população em torno das escolhas políticas, não somente do voto, mas também em relação à direção que os governantes tomariam. São os interesses do povo comum que passaram a vigorar, e descobrir isso na história nos inspira a continuar a participar da política”.
“A participação popular na política é imprescindível, e sempre foi, especialmente a partir do momento em que se tornou mais democrática, com o sufrágio universal dando a mulheres, pessoas negras e indígenas acesso ao campo formal da política”, declara a pesquisadora Maria Clara Guerra Azevedo De Barros. "Pensar na política como algo separado, distante, é um equívoco. A política transpassa os demais aspectos de nossas vidas e é impossível pensar a História sem voltar-se a essa esfera. A participação cidadã na política deixa, também, vestígios de quais são as prioridades, os pontos de atrito e as principais discussões de seu tempo, registrados para a posteridade”, finaliza ela.
A fundação da Câmara de Curitiba: o povo exige justiça
Você sabia que o aniversário de Curitiba poderia ser comemorado em 4 de novembro, em vez de 29 de março? Neste dia, em 1668, o capitão-mor de Paranaguá, Gabriel de Lara, sesmeiro de Paranaguá, atendeu ao apelo dos moradores do povoado de Nossa Senhora da Luz e Bom Jesus dos Pinhais e levantou o pelourinho, símbolo da justiça e da administração régia.
O primeiro pelourinho de Curitiba foi erguido onde existe, hoje, a praça José Borges de Macedo, na região central da cidade. O ato de levantamento do pelourinho foi assinado, em 4 de novembro de 1668, por 16 “homens bons” - grupo seleto formado por homens brancos, casados ou emancipados; se solteiros, com mais de 25 anos; e que detinham propriedades.
Pelas ordenações portuguesas do período colonial, o ato era necessário para elevar uma aldeia à categoria de vila e representava a primeira expressão de justiça de uma povoação. “O pelourinho era um poste de madeira destinado à punição por chibata de condenados da justiça”, explica Lorena no artigo “Quando Curitiba nasceu: os primórdios da cidade de Curitiba (1650-1822)".
“Fizeram os moradores desta dita vila requerimento perante ele [Gabriel de Lara] dizendo todos a uma voz que estavam povoando estes campos de Curitiba, em terras e limites da demarcação do Sr. Marquês de Cascais [donatário da Capitania de São Vicente], e assim lhe requeriam, como capitão-mor e procurador do dito senhor, que mandasse levantar Pelourinho em seu nome, por convir assim o serviço do Rei e acrescentamento do donatário; e visto o requerimento dos moradores ser justo, mandou logo levantar Pelourinho com todas as solenidades necessárias, em paragem e lugar decente nesta Praça”, afirma trecho da “Acta do Levantamento do Pelourinho”, o documento mais antigo dos anais da Câmara de Curitiba.
“O capitão-mor Gabriel de Lara, no entanto, não seguiu com a convocação de membros para a Câmara, não completando os trâmites que elevariam Curitiba de povoado para vila”, pondera Maria Clara, cuja pesquisa resultou no artigo “Mudanças no caráter de poder, participação e atuação da Câmara (1693-2023)”. Desta maneira, Curitiba permanece até 1693 com uma justiça incompleta, com a presença de um pelourinho, mas a ausência da Câmara.
Nas décadas seguintes, o povoado cresceu e diversas sesmarias foram entregues. Conforme as ordenações filipinas, as sesmarias eram as “dadas” de terras, casas de campo ou pardieiros “que foram, ou são de alguns senhorios, e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas, e agora não são”.
“Armas na mão” e briga na capela: Câmara de Curitiba é criada
Passados quase 25 anos da instalação do pelourinho, os homens-bons se reuniram mais uma vez, no dia 24 de março de 1693, em nome da “paz, quietação e bem comum deste povo”. “Este dito povo tão desamparado de governo e disciplina da justiça”, diz outro trecho do “Requerimento da creação das justiças”, endereçado ao capitão-povoador Mateus Leme.
Os moradores do povoado queixavam-se da insegurança na região, pela ausência de uma autoridade judiciária (função que as câmaras municipais do Brasil só deixariam de executar em 1824, com a Constituição do Império). “Quanto mais cresce a gente [moradores], por passarem de noventa homens, se vão fazendo maiores desaforos, e bem se viu esta festa andarmos todos com as armas na mão, [...] e outros insultos de roubos, como é notório e constante pelos casos que têm sucedido, e daqui em diante será pior, o que tudo causa o estar este dito povo tão desamparado de governo e disciplina da justiça. E atendendo nós, que ao diante será pior por não haver a dita justiça na dita povoação.”
A população pedia a Mateus Leme que “por ser já decrépito e não lhe obedecerem, seja servido permitir que haja justiça nesta dita vila, pois nela há gente o bastante para exercer os cargos da dita justiça”.
“Visto o que alegamos e o nosso pedir ser justo e [pelo] bem comum de todo este povo, o mande ajuntar e fazer eleição e criar justiça e câmara formada, para que assim haja temor”, finaliza o pedido ao capitão-povoador, assinado pelos “homens bons” da povoação.
“Junte-se o povo. Referireis o que ao que pedem”, responde, no mesmo dia, despacho de Mateus Leme. “Havia uma autorização prévia do capitão-mor de Paranaguá, Francisco da Silva Magalhães, e, por esse motivo, Mateus Leme faz um apelo para que o povoado receba a justiça. Isso implica em alçar o povoado à vila, o que permitiria a instauração de uma Câmara de Vereadores. A Câmara seria responsável por aplicar essa justiça”, indica a pesquisadora Lorena.
Determinada a criação da Justiça, ou seja, da Câmara Municipal, o próximo ato foi ordenar seu funcionamento e membros. “Reunidos na Capela de Nossa Senhora da Luz, edifício simples, mas mais importante do povoado, no dia 29 de março daquele mesmo ano [1693], 64 ‘homens-bons’ realizaram, pela primeira vez, o pitoresco ritual do primeiro sistema de eleição, a eleição de pelouros, adotado pela Câmara de Curitiba, como disposto pelas Ordenações Filipinas”, esclarece a estudante Maria Clara.
A reportagem histórica “A padroeira, a Câmara Municipal, os índios, o ouro e a capela”, assinada em 2013 pelo jornalista João Cândido Martins, da Diretoria de Comunicação Social, indica que a “gota final” para o pedido de criação da justiça foi “a luta corporal entre dois moradores dentro da capela, durante a Páscoa [de 1693]”.
Na série "Câmara na História", de 2022, a matéria histórica “Briga na capela provocou 1ª eleição de Curitiba”, o jornalista José Lázaro Jr. também fala da primeira eleição para a Câmara Municipal de Curitiba. Os três primeiros vereadores da vila recém-criada foram o capitão José Pereira Quevedo, Antônio dos Reis Cavalheiro e Garcia Rodrigues Velho, escolhidos no ano de 1693 "por meio de um intrincado sistema eleitoral imposto pela Coroa Portuguesa às colônias, em três etapas, que misturava votação, indicação e sorteio”.
De 1693 a 1808, a Câmara de Curitiba funcionou com a seguinte configuração: 3 vereadores, 2 juízes, 1 procurador, 1 tesoureiro, 1 almotacel, 1 escrivão, 1 alcaide e 1 porteiro. Ao todo, eram 11 pessoas.
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