Audiência pública alerta ao preconceito contra a cannabis medicinal
O evento teve como tema “Conselho Federal de Medicina & Cannabis: o Brasil na contramão do mundo”. (Foto: Carlos Costa/CMC)
A Câmara Municipal de Curitiba (CMC) reuniu, em audiência pública na tarde desta segunda-feira (7), médicos, advogados, pais e pacientes que fazem uso da cannabis medicinal. Proposto pelas vereadoras Flávia Francischini (União) e Maria Leticia (PV), o debate foi motivado pela resolução 2.324/2022, do Conselho Federal de Medicina (CFM), que restringia o uso de remédios à base de canabidiol – um dos compostos da maconha – a alguns quadros de epilepsia infanto-juvenil, apenas se não houvesse resposta a outros tratamentos. Após críticas de especialistas e pacientes, a entidade suspendeu a normativa e abriu uma consulta pública sobre o tema.
Para Maria Leticia, é importante que as pessoas se manifestem e ajudem a divulgar a consulta pública, que ficará aberta até o dia 23 de dezembro, pela internet. “A gente crê que precisa desfazer o preconceito mesmo, trazer pessoas de pontos de vista diversos e convergir”, opinou. Segundo a vereadora, a audiência pública embasará um relatório que será encaminhado ao CFM. “A razão que nós estamos aqui é que nós precisamos realmente nos mobilizar”, reforçou Maria Leticia. Em sua avaliação, “a visão ainda é muito retrógrada, embora os benefícios estejam muito claros”. A vereadora lembrou do projeto de sua iniciativa sobre a conscientização ao uso medicinal da cannabis, protocolado em março de 2020 e apto à inclusão na ordem do dia (005.00033.2020, com o substitutivo 031.00008.2021).
“Minha bandeira nunca foi e nunca será a liberação das drogas para fins recreativos”, ponderou Francischini. A reflexão proposta no evento, continuou, é a análise das alternativas medicinais da cannabis, superando a desinformação e o preconceito. “Com o acompanhamento médico, muitas pessoas tiveram sucesso com o uso do canabidiol”, relatou. Mãe de um menino autista, a vereadora disse que o tratamento com cannabis medicinal foi o que trouxe melhores resultados ao filho, que chegou a tomar oito remédios alopáticos diariamente. No entanto, ela chamou a atenção para as dificuldades que muitas famílias enfrentam para ter acesso ao tratamento. Francischini ainda lembrou que a morfina e a heroína vêm da mesma planta, a papoula.
“Se nós formos analisar, todos os medicamentos são drogas”, concordou Professora Josete (PT). Amália Tortato (Novo) seguiu na mesma linha: “Para combater o preconceito, a melhor forma é a informação. E essa resolução justamente veda o acesso à informação [ao vedar aos médicos o debate do assunto]”. Outro vereador a conferir a audiência pública foi Mauro Bobato (Pode). A intenção, disse ele, era aprender mais sobre o tema.
Ciência e pesquisa
O filho de Maria Aline Gonçalves também usa a cannabis medicinal. Citando a “dor das mães que têm que suplicar por um medicamento”, ela lamentou a ausência de representante do CFM na discussão. “Aqui, eu tomo a ousadia de falar em nome de todas as mães de pacientes em uso da maconha medicinal. Nós temos medo é da morte, nós não temos medo da lei”, observou a convidada. Emocionada, ela fez um apelo ao CFM: “Se vocês não estão do lado dos pacientes e da ciência, de que lado vocês estão?”.
Também na mesa do evento, a psiquiatra infantil Amanda Medeiros disse que “não tem porque ter medo dessa planta se a gente souber usar para a indicação correta, na dose correta para ela”. De acordo com a médica, de 500 pacientes atendidos com a cannabis, 90% responderam bem ao tratamento. Para ela, o debate precisa inicialmente ser feito do ponto de vista científico. “As possibilidades terapêuticas são enormes”, observou o médico Alcides Augusto Souto de Oliveira, diretor do Centro de Epidemiologia da Secretaria Municipal da Saúde (SMS). “Como já foi dito aqui, é ciência, é ciência, é ciência.” O convidado também acredita que o debate é importante justamente por ampliar o acesso às informações: “Espero que esse tema continue avançando na cidade de Curitiba”.
O neurologista Paulo Bitencourt contou ter acompanhado melhores efeitos do canabidiol em casos de obsessões e compulsões, tanto de comportamentos quanto de pensamentos. “A gente tem inclusive hoje produtos na farmácia com o CBD e o THC”, completou o médico prescritor Renan Abdalla. “A gente tem o canabidiol, muito usado nas crianças, pacientes psiquitátricos, mas a gente tem também o THC, com potencial analgésico”, explicou. Citando os estudos do Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar), Thiago Ermano Jorge, da Associação Brasileira de Indústrias de Cannabis (ABICANN), acredita que o importante é chamar a atenção para a inovação e a ciência.
Viés legal
“Essa resolução do Conselho Federal de Medicina é ilegal”, analisou o advogado Andre Feiges. Para ele, a medida viola o ato médico e, “o mais grave”, censura os profissionais. “No fim das contas, o que essa resolução do Conselho Federal de Medicina faz é criminalizar a Medicina, é criminalizar a vida dos pacientes”, salientou. Uma ideia para a regulamentação da cannabis medicinal, sugeriu Feiges, é que sejam aplicadas as regras da prescrição off label de medicamentos, em que o médico assume a responsabilidade pela decisão.
“Lamento muito que o Conselho Federal de Medicina tenha regredido na regulamentação desse tema específico. Ainda estão sendo apurados os motivos dessa regressão, mas também há as regulamentações da Anvisa, que autorizam a importação e a produção do medicamento. Essa análise técnica está sendo acompanhada pelo Ministério Público Federal”, declarou a procuradora da República Hayssa Kyrie Medeiros Jardim. O público também teve espaço para se manifestar, com perguntas à mesa. Participaram da discussão representantes da Secretaria Estadual da Saúde (SESA), estudantes e ativistas.
Confira, no Flickr da CMC, o álbum de fotos da audiência pública:
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