ESPECIAL: Vila Nossa Senhora da Luz foi criada para “desfavelar” Curitiba
por Fernanda Foggiato
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publicado
22/07/2016 07h00,
última modificação
15/05/2023 22h58
A inauguração da Vila reuniu, além do prefeito Ivo Arzua e do governador Paulo Pimentel, o presidente Castelo Branco e uma comitiva de militares. (Foto: Acervo Casa da Memória)
“A presença de favelas em Curitiba torna transfigurada sua beleza natural. A remoção dará a nossa cidade o privilégio de ser a primeira completamente desfavelada em todo o país.” Com frases assim, a imprensa paranaense comemorava, em 1966, a implantação da Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, que levava o nome da padroeira da capital.
Primeiro conjunto habitacional da cidade e um dos pioneiros do Brasil, inaugurado em novembro daquele ano, pela Operação Desfavelamento Cohab-CT, ele pretendia realocar famílias das cerca de 25 ocupações irregulares da capital – de locais como o Rio Belém, o Santa Quitéria e a Favela do Ahú.
A movimentação começou um ano antes, com a desapropriação do terreno que receberia o empreendimento. A CIC, que atualmente ocupa 10% do território da cidade, naquela época era o Barigui do Portão, um vazio verde com algumas chácaras e colônias – o nome atual foi oficializado só em 1975. Durante a “lua de mel” da imprensa com o projeto, a Vila era definida como “fascinante experiência social”, “de inestimável valia, sob o ponto de vista social e urbano”, “grandiosa obra realizada pela atual administração em favor da reintegração na sociedade da população marginalizada”, “exemplo nacional”, “primeira desapropriação de área em Curitiba por interesse social”, “com dimensões de uma cidade” e “início da campanha de erradicação das favelas de Curitiba”.
Na Câmara Municipal, os vereadores destacavam que o nome da Vila “por virtuosa inspiração do senhor prefeito municipal [Ivo Arzua]” era “louvável”. “Oxalá Nossa Senhora da Luz dos Pinhais asperja suas luzes e bênçãos sobre os governantes e governados de nossa capital, minorado o sofrimento de todos”, cita o parecer da Comissão de Legislação e Justiça, em 1965, à mensagem do Executivo para denominar o empreendimento popular. “Esperamos que seja um modelo de urbanização e de amparo assistencial aos menos favorecidos”, acrescentou o colegiado de Viação, Obras e Serviços Públicos, dentre outros pareceres antes da análise da matéria em plenário.
A construção das primeiras 2.150 casas financiadas da Vila – 1.750 do “tipo A” e 400 do “tipo E” - foi iniciada em dezembro 1965. A ideia era que o local fosse uma “cidade autônoma”: antes das administrações regionais, espécie de subprefeituras criadas na década de 1980, a Nossa Senhora da Luz contou com uma superintendência. Denominada Suviluz, a autarquia foi aprovada pela Câmara de Curitiba e criada pela lei municipal 2922/1966, mas acabou extinta três anos depois. Na mensagem aos vereadores, Arzua destacava a “fascinante experiência social” no campo da habitação popular. Justificava, também, que essa estrutura administrativa era necessária, “sob pena de regressão ao estágio infra-humano de vida para seus habitantes”.
Na inauguração oficial, dia 11 de novembro de 1966, o palanque reuniu, além do prefeito Ivo Arzua e do governador Paulo Pimentel, o presidente Castelo Branco e uma comitiva de militares. Arzua, no final de seu discurso, saudou as “milhares de famílias de nossos irmãos, brasileiros, que viviam em condições subumanas”. Castelo Branco finalizou: “A grande obra mais pertence à Revolução que a qualquer governo”.
Triagem
A “Gazeta do Povo” noticiou, na edição de 10 de novembro de 1966: “Famílias faveladas ganham alegres casas no Barigui”. As primeiras delas, relatou o jornal, haviam sido transferidas dois dias antes, de “barracos” da cidade. “Alguns acham que a casa é pequena, mas admitem francamente que é melhor do que o lugar onde viviam. […] As possibilidades de ampliação [dos imóveis] são boas, porque há área de terreno e inclusive base para um modesto primeiro andar.”
Segundo a reportagem, a mercearia em funcionamento, à época a única em quilômetros, “não fornece bebida alguma, para ninguém”, por orientação oficial. “E o mais curioso é que apesar de serem favelados, em sua maioria, os que ali vão residir, ninguém reclamou contra isso”, completou. A “Gazeta” ainda relatou que os moradores foram “escolhidos a dedo” e “passaram por diversos programas de orientação de curto prazo. A maioria deles é religiosa (católica), não são dados a vícios e têm princípios de higiene naturais ou adquiridos”.
Em janeiro de 1967, antes da remoção de mais pessoas para o local, o “Diário do Paraná” estampou a reportagem: “Educar para depois desfavelar”. Segundo a publicação, a prefeitura havia anunciado que as 500 famílias que seriam transferidas para a Vila, após um estudo de assistentes sociais detectar que elas não apresentavam “condições de hábitos para formar a nova comunidade”, precisariam passar por um “estágio de educação para posterior remoção”. A recomendação, inclusive, seria do Banco Nacional de Habitação (BNH), financiador do projeto. “Essas quinhentas famílias seriam removidas para um Centro de Triagem, a ser instalado nas proximidades da Vila”, acrescentou o jornal. A Suviluz coordenaria a atividade, com a ajuda da Fundação de Recuperação do Indigente.
Segundo o arquiteto Alfred Willer, um dos autores do projeto da Vila Nossa Senhora da Luz e o primeiro diretor-técnico da Cohab-CT, de 1965 a 1968, “a triagem existia”, sob a responsabilidade de assistentes sociais do órgão público, criado anos antes. “O levantamento, realizado a partir de 1966, serviu para estimar a população favelada de Curitiba e os questionários forneceram valioso material de pesquisa. O número de casas decorreu desse levantamento”, conta. Mas para poder financiar uma casa na Vila, ele lembra que o BNH “somente aceitou famílias com carteira assinada, o que resultou na eliminação de algumas delas”.
No livro “Cidade Industrial”, da coleção “Bairros de Curitiba”, o jornalista e urbenauta Eduardo Fenianos afirma que a Vila foi formada ali já com a intenção de prover mão de obra às indústrias que seriam instaladas. Em agosto de 1967, reportagem do “Diário do Paraná” celebrava a desapropriação de terreno para a instalação do Distrito Industrial, próximo à Vila. Lá havia “farta disponibilização de mão de obra”, e não haveria os “distúrbios” causados por indústrias em zonas residenciais, apontava o jornal.
Já Willer diz que a área foi escolhida pelas “condições favoráveis do terreno, firme e seco”, “declive suave para facilitar o escoamento de água pluvial, dispensando terraplanagem”, pela “proximidade de indústrias madeireiras, local de trabalho [para os futuros moradores]” e “fácil acesso por rodovia, ônibus e trem”.
“Uma Vila com sede”
Só que para os habitantes da Vila Nossa Senhora da Luz irem à cidade, no início, o jeito era apelar para o trem, já que a primeira linha de ônibus, até a praça Rui Barbosa, foi implantada em fevereiro de 1967. A população, mesmo assim, queixava-se que os veículos eram insuficientes. De acordo com uma carta do morador Deusdet Palmeira Silva, publicada no dia 29 de março pelo “Diário do Paraná”, apenas três ônibus serviam uma população de 3 mil pessoas. “Além disso os veículos são velhos e há falta de higiene em seu interior”, acrescentou.
Em março, foram abertas as matrículas para a escola da Vila - conhecida como “Grupão” e premiada, depois, pelo projeto arquitetônico. As obras estariam na fase final, mas as primeiras turmas só começaram a funcionar em 1º de junho de 1967. Segundo Willer, que nega ter faltado infraestrutura para a transferência das famílias, as crianças estudavam em um estabelecimento do bairro Fazendinha.
Cinco meses depois da pomposa inauguração, os problemas que afligiam os moradores, principalmente a falta de água, estamparam a capa da edição de 15 de abril de 1967 do “Diário do Paraná”: “Uma Vila com sede”. De acordo com a matéria, faltava luz e a água havia acabado. A matéria enumerava outros problemas denunciados pelos moradores: dois meses depois do início do ano letivo, o grupo escolar da vila não estava em atividades. As crianças haviam sido matriculadas, um dos três pavilhões estava pronto e havia professores mas, de acordo com a publicação, faltavam as carteiras. “E a gurizada fica o dia inteiro na rua.” Quanto aos ônibus, a população também questionava a parada dos veículos na entrada da comunidade, sem que trafegassem por suas ruas. Havia casas cuja energia elétrica não havia sido ligada à rede. Sobre as ruas sem pavimentação, o comentário era: “Quando chove há lama, quando não chove pó”.
No dia seguinte, o jornal publicou o editorial “Vila em crise”: “Construíram-se as casas e lá foram jogadas, despreparadas para a vivência comunitária, famílias de favelados, famílias de pequenos servidores do município e de trabalhadores de baixo nível de ingressos”. A comunidade foi chamada de “empreendimento político”. E a imprensa continuou noticiando os problemas na Vila, com destaque à falta de água: “Os moradores, principalmente as crianças, vão e voltam carregando baldes e latões”.
“Antes de ser atendida pela Sanepar, a Vila foi equipada com uma estação de tratamento”, explica Willer. Mas a falta de água, em agosto de 1968, virou caso de polícia. “Um caminhão foi impedido de distribuir água na Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais pela administração da Suviluz, sob a alegação de que o líquido estava contaminado.” A acusação era que um candidato à Câmara Municipal de Curitiba pretendia trocar a água por votos.
Os moradores reclamavam, ainda, que o posto policial não tinha viatura, da falta de empregos nos arredores, da distância do Centro, de preços superiores aos praticados no restante do comércio da cidade e da ausência da coleta de lixo. Em agosto de 1968, a rede de esgoto apresentou problemas: “As manilhas foram rompidas, formando-se um banhado negro e fétido, que é uma ameaça constante de epidemia a preocupar os moradores da região”.
Essas situações chamavam a atenção dos vereadores. Vinham deles demandas para a instalação de colégio de ensino médio, centro profissionalizante e a coleta regular do lixo, por exemplo. Em outubro de 1968, a Cohab-CT respondeu denúncias publicadas sobre a Vila. Segundo um funcionário do jurídico da companhia, haveria “intrusos” no local: “Além de não pagarem qualquer taxa, recusaram-se a aceitar todas as propostas feitas para a regularização da ocupação ilícita das moradias. Essas famílias simplesmente instalaram-se nas casas”.
Em janeiro de 1969, moradores denunciaram à imprensa que a desidratação estaria causando “elevado número de vítimas” na Vila. “Adiantaram que a causa da grande incidência é a promiscuidade em que vivem as crianças, já que quando atacadas pela doença as mães não possuem o esclarecimento devido, além da falta de recursos para combater a desidratação.” Para resolver o problema das torneiras secas e, consequentemente, dos riscos à saúde gerados pelo consumo de água inadequada, a prefeitura anunciou, em abril de 1969, que “em breve” começaria as obras para a implantação de uma estação de captação e tratamento das águas do rio Barigui.
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