ESPECIAL: Os filhos da Vila Nossa Senhora da Luz
Vista da Nossa Senhora da Luz de cima do Farol do Saber da Vila. (Foto: Michelle Stival da Rocha/CMC)
Quando a Vila Nossa Senhora da Luz foi inaugurada, em novembro de 1966, faltavam água, luz, asfalto, escola e policiamento. Mas havia gente, muita gente; famílias vindas de todos os cantos de Curitiba e do interior. Várias gerações passaram pela comunidade. Muitos foram embora, outros resistiram ao tempo para contar suas histórias. Quem vive lá há décadas se diz orgulhoso da comunidade e reclama do preconceito que sempre sofreu por morar em um lugar considerado violento pelo resto da população.
O nosso guia pelas ruas estreitas da Vila Nossa Senhora da Luz (“dos Pinhais”, com o tempo, deixou de ser utilizado) foi o pintor, decorador e repórter da vila, Haroldo Marconi, de 48 anos, 46 deles vividos ali. Veio do norte do Paraná em 1970, trazido pelos pais, com mais sete irmãos – apenas um mais novo, ainda bebê. Ele nos recebeu no bar Tio Sam, na praça 5, onde estava fazendo uma pintura. “O melhor lugar do mundo para se viver é aqui. Temos tudo. São vários comércios, de um pessoal bacana, trabalhador”, comemora.
“Antigamente era tudo terra vermelha. Quando chegamos já tinha praças, as casas eram todas padrão, pintadas com cal, nada de sobrados. As cercas eram todas de madeira. Tinha janela que era pintada de azul, outras de amarelo, outras de vermelho”, recorda. Mas desde cedo aprendeu que morar na Vila é ser discriminado. “Preconceito sempre rolou. Em 1987, quando eu servi o Exército aqui no 5º Batalhão Logístico, fui perseguido o ano inteiro por ser morador da Nossa Senhora da Luz. Diziam: 'Esse aí é maconheiro'. Só que eu resisti e fiquei lá o ano inteiro.”
Considerado um líder comunitário, hoje ele diz combater o estigma da Vila em sua página no Facebook com reportagens que faz com seu próprio celular, as quais são compartilhadas pelos amigos. “A gente não aceita mais que falem mal da Nossa Senhora da Luz. É um 'bairro' maravilhoso, eu tenho orgulho de dizer que moro na Nossa Senhora da Luz. Aqui existe todo o tipo de pessoas, mas a maioria é boa, digna, de caráter, trabalhadores. O tráfico existe. Mas existe também no Batel, existe no Centro de Curitiba, em São Paulo, na Alemanha, no Japão, em tudo quanto é lugar. Então não adianta rotular a Vila por isso. O urubu só vê o que não presta e o beija-flor só vê o que presta. Um lugar que eu me sinto seguro é aqui. Sempre fui respeitado e respeitei as pessoas aqui.”
Apesar da campanha, ele admite que a forma de se lidar com os desentendimentos mudou. “Quando um traficante brigava com o outro, a guerra era olho roxo, um dava porrada no outro, dali dois dias estavam tomando cerveja juntos e tudo bem. Hoje em dia não, se você ofender alguém leva tiro, né? A polícia também. Quando tinha uma execução no bairro, a polícia vinha, fazia amizade com os moradores, fazia as perguntas. Hoje em dia não, a gente não pode nem chegar perto que já estão xingando”, reclamou.
O “Tio Sam” e o dono da farmácia
O dono do bar onde Marconi estava sendo entrevistado, Santilho Calixo, 75, o “Tio Sam”, também é morador antigo - desde 1977. “Quando eu mudei só tinha gente trabalhadora. Se a gente se encontrava com uma pessoa na rua é porque ela vinha do serviço.” Para ele, hoje o que falta na área é “respeito” por parte do poder público. “Outro dia colocaram fogo perto da minha casa e liguei, liguei para a polícia e ninguém atendia. Depois que o bombeiro chegou, aí encheu de polícia.”
Marconi nos acompanhou em uma breve conversa – interrompida pela entrada de clientes – com o dono da primeira farmácia da região, comprada em 1969. Almir Souza Fonseca, 73, contou que era acordado de madrugada para atender casos de emergência, já que à noite não existia transporte coletivo para o Centro. “Recebi muita gente fora de hora que tocava a campainha. Era chupeta, atadura, mercúrio, tudo assim fora de hora”, relata. Ele veio de Jandaia do Sul, município paranaense, com a esposa e os dois filhos. “Comprei com esse nome aí, Farmácia Miral, só que depois eu mudei para Drogacic e agora voltei para o nome Miral novamente.”
Nascida na Vila
No Farol do Saber, encontramos a zeladora Leia Loreni, de 46 anos, que literalmente nasceu na Vila, pelas mãos de uma parteira. Foi a terceira filha de um casal que havia se mudado do Parolin. “Já casei, separei, hoje estou solteira. Mas quis com muito orgulho continuar morando aqui.” Ela recorda que na casa dos pais (a mãe costureira e o pai, motorista) tinha um poço de 30 metros de profundidade e quando faltava água na região os vizinhos formavam fila em frente à sua residência, com baldes e latas. “Lembro de uma estiagem grande quando eu tinha uns 8 anos, mais ou menos, que tinha água em um dia e depois era racionada por outros quatro dias.” O poço, então, era a salvação.
O pai era ciumento, lembra ela, e não gostava que frequentasse o cinema (que hoje o prédio abriga uma Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, os Mórmons). O jeito, brinca Leila, era “escapar” para o Centro Social, onde frequentava o sarau. Ela também conta que os jovens costumavam fazer festas em casa. “Só tenho coisas boas para falar. Nunca roubaram nada da gente, nem do nosso varal. Sinto-me segura aqui. Acho que violência tem em todos os locais, em todos os bairros.” E ao ser questionada sobre o que falta ser feito: “Acho que nunca entendi porque no Albert [Schweitzer, escola municipal] não tem aula noturna”.
Desde 1967
Já estávamos deixando a Vila quando descobrimos que uma de suas moradoras mais antigas, a pensionista Leonir Lucinda dos Santos, 82, estava no grupo da terceira idade da Paróquia Nossa Senhora da Luz – já havíamos batido à sua porta antes, mas nada. Ela contou que, em 1967, veio com seus quatro filhos e o marido – antes moravam com os pais dela, no Jardim das Américas. Pagou a casa em 20 anos. “Era pouco, mas era tão difícil”, ri.
Na época, trabalhava de enfermeira, “cuidadora particular, como dizem, né?”. Mas contar para alguém de fora que morava na Nossa Senhora da Luz, “nem pensar”. “Eu não falava que era da vila. Para arrumar serviço, se falasse não conseguia. Porque aqui [diziam que] só dava bandido.”
O trajeto até o emprego era feito uma parte a pé, outra de ônibus. “Era difícil porque tinha que atravessar toda a Vila e pegar o ônibus na João Bettega. Quando chovia isso aqui era um barrão só. Já hoje não existe distância, porque a condução é mais fácil”, relata – o asfalto só veio no final da década de 1970, segundo alguns moradores, graças ao pedido de um vereador da época. Além do ônibus existia o trem, que passava às 5h30 da manhã. “Se você o perdesse e não tivesse dinheiro para pegar ônibus, aí ó!”, acena a moradora, para dizer que não havia mais saída. Táxi naquela época, para ela, “nem pensar”.
Como não havia escola perto, os filhos estudavam em outros bairros. “Depois é que surgiu o 'Grupão'. Não tinha escola, posto de saúde, comércio. A partir dos anos 70 começou a melhorar.” A região de sua casa, quando se mudou, não tinha luz. “Seis meses depois é que veio. Era lampião e vela. A água era buscada na caixa d'água. A gente tinha um carrinho, punha as latas em cima e ia buscar água com as crianças.” A coleta de lixo também não era feita pela prefeitura: “Jogava por aí no mato”.
Para se divertir, iam ao cinema. “Tinha que ir lá, não tinha outra coisa.” E em alguns finais de semana iam ao Centro, no Passeio Público. Nadavam e pescavam no rio Barigui, que segundo ela era limpo. “Cansamos de descer fim de semana lá e passar uma manhã inteira pescando para o almoço.”
Já sobre os problemas de segurança, ela relata que “toda a vida teve”. “Acho que o que vale sou eu. Eu me dou com meus vizinhos, meus filhos também não se envolveram [com a violência]. Neto tive sim que se envolveu e no fim ele faleceu. Não mataram, mas morreu de Aids, nos anos 80.”
Os vizinhos ela diz que vieram de diversos lugares. “Aqui veio de tudo um pouco, o que prestava e o que não prestava. Veio pessoal da Vila Pinto, da Vila Guaíra, da Vila Izabel, do Ahú. Esse povo vamos dizer aqui que veio praticamente meio que na marra, para desfavelar mesmo”, admite. Mas de acordo com Leonir, alguns não conseguiram pagar o financiamento e abandonaram suas residências: “Daí o pessoal invadia as casas abandonadas dos que não conseguiam pagar”.
“Antro de marginais”
É unânime a opinião de que o Centro Social precisa ser reformado. “Está abandonado, é um empurra-empurra de responsabilidade de um para o outro [prefeitura e governo estadual]. Ali ficaria a associação dos moradores, ginásio de esportes, espaço para eventos. Também o Centro Cultural, para cursos profissionalizante a nossos jovens”, cobrou Marconi.
Dona Leonir, do alto de seus 49 anos como uma filha da Nossa Senhora da Luz, concorda: “Ali hoje podia hoje ser uma escola. Era para sair ainda um Centro Cultural, foi até disponibilizado verba e começaram a obra, mas agora é um antro só de marginais e de drogados”.
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