Especial 329 anos: quintais cercados, portas fechadas e a saga dos “pardieiros”

por Fernanda Foggiato | Revisão: Vanusa Paiva — publicado 29/03/2022 08h30, última modificação 31/10/2022 19h10
Série do Nossa Memória em homenagem ao aniversário de fundação da Câmara de Curitiba e da cidade resgata “causos” sobre o “antigo normal”.
Especial 329 anos: quintais cercados, portas fechadas e a saga dos “pardieiros”

À esq., a vila em gravura de 1855 do acervo da Biblioteca Nacional. À dir., panorâmica de 1870 da Casa da Memória. (Montagem: Carol Periard/CMC)

Hoje as regras para a execução das obras públicas e privadas na capital paranaense são consolidadas pelo Código de Posturas, a lei municipal 11.095/2004. É obrigatória, por exemplo, a emissão do alvará de licença pela Prefeitura de Curitiba. E como eram essas regras no “antigo normal”, durante o processo de organização da vila? A preocupação surge já nos provimentos do primeiro ouvidor-geral da capitania, o português Raphael Pires Pardinho, editados em 1721.

“Proveu que daqui por diante nenhuma pessoa com pena de seis mil réis para o conselho faça casas de novo na vila sem pedir licença à Câmara”, determinou o ouvidor Pardinho. Além dessa autorização, cabia aos vereadores dar chãos [terrenos] e depois fiscalizar as construções ou reformas. Lembrando que a Câmara Municipal de Curitiba, à época, desempenhava funções legislativas, executivas e judiciárias.

Doado o “chão”, a benfeitoria tinha que ser executada em no máximo seis meses. Senão o terreno passava para outra pessoa. Para combater os “pardieiros”, como eram chamados os imóveis em ruínas, o ouvidor Pardinho deu um prazo um pouco mais “generoso”. Os proprietários e suas mulheres, conforme a correição, tinham um ano, depois de emitida a ordem pela Câmara, para executarem as melhorias. Do contrário, poderiam perder não só o terreno como os materiais usados na obra. 

Na discussão, em 1829, do que é considerado o primeiro Código de Posturas consolidado pela Câmara Municipal de Curitiba (CMC), os “pardieiros” voltaram à pauta. Enquanto alguns vereadores queriam reforçar a regra estipulada pelo ouvidor, outros defendiam que a medida seria “inconstitucional” e contrária ao “direito de propriedade”. Para o presidente da Casa naquele período, por exemplo, quem não podia ou não queria “levantar o pardieiro” deveria ser constrangido a vender o imóvel por um preço razoável.

"Desacatos e ofensas"
Em uma série de artigos das ordenações de 1721, o ouvidor Pardinho tentou organizar o núcleo urbano da vila em quadras retangulares e adensadas. Segundo os próprios provimentos, a ideia era evitar que a povoação ficasse “disforme” e que os moradores “estivessem desviados” dos vizinhos que pudessem “lhes acudir” em caso de necessidade, de dia ou à noite.

Quintais abertos e mal tapados, de acordo com os provimentos, eram considerados “desacatos e ofensas de Deus” – uma vez que a religiosidade desempenhava papel central sobre os costumes da população e a vida política. Também as portas, no "antigo normal" sob a concepção do ouvidor Pardinho, deveriam ser mantidas fechadas. Era obrigatório que as casas fossem cobertas com telhas de barro.

Em 1787, o ouvidor-geral Francisco Leandro de Toledo Rendon fixou o prazo de três meses para os moradores concluírem suas calçadas, senão os oficiais da Câmara mandariam fazer a benfeitoria às custas do “rebelde”. Em 1798, os provimentos do ouvidor-geral e corregedor Manoel Lopes Branco e Silva reforçaram a preocupação com a limpeza dos terrenos, para que se evitasse a formação de “charcos”. Ele incumbiu a Câmara Municipal de fiscalizar se a correição estava sendo seguida.

As exigências para as edificações, nas posturas aprovadas pelos vereadores em 1829, ficaram mais elaboradas. Os vereadores passaram a se referir à “elegância” das habitações urbanas. As choupanas, assim como os “pardieiros”, não eram aceitas, pelo menos nas principais ruas da vila.

Quando o código foi aprovado pelo Conselho-Geral da Província de São Paulo, em fevereiro de 1831, depois de um ano de discussões, vieram mais regras. Os proprietários passaram a ser obrigados a rebocar e a caiar as edificações, sob a pena de multa. Também foi determinada uma altura mínima para as casas de no mínimo 18 palmos (pouco mais de 4 metros). Uma exigência que só subiu, literalmente, com o passar dos anos.

Especial 329 anos
O Nossa Memória, projeto da Diretoria de Comunicação Social da CMC, resgata, ao longo da semana em que o Poder Legislativo e a cidade de Curitiba completam o 329º aniversário de fundação, alguns “causos” antigos. São histórias curiosas, que mostram um pouco do “antigo normal”, a partir das posturas determinadas pelos ouvidores-gerais e os vereadores.

O período da pesquisa começa em 1721, com os provimentos do primeiro ouvidor-geral da capitania, o português Raphael Pires Pardinho. A vinda dele à vila é considerada o quarto ato da fundação de Curitiba.

O recorte passa pelas correições de outros ouvidores; segue pelas primeiras deliberações dos vereadores, ainda no século 18; e vai até 1831, quando o Conselho-Geral da Província de São Paulo aprovou a versão final daquele que pode ser considerado o primeiro Código de Posturas da cidade, aprovado pela Câmara Municipal em 1829. 

** Confira aqui as referências da segunda parte da série especial.

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