Especial 170 anos do Cemitério Municipal de Curitiba: quem foi Maria Bueno
Capela da milagreira Maria Bueno fica na quadra 2 do Cemitério São Francisco de Paula. (Fotos: Fernanda Verhagen/CMC - Arte: Diogo Fukushima/CMC)
“Foi murado o ‘campo da Maria Bueno’. A ingenuidade popular, que cultuava a memória da morta, fazendo de Maria Bueno a santa milagrosa que amparava muitos dos duros golpes do destino, viu desaparecer o pequeno altar inocente. Por muitos anos, as velinhas se acenderam ao pé da tosca sepultura da infeliz mulher, vítima da sanha brutal de seu amante, e cuja tragédia Curitiba toda conhece”, publicou “O Estado do Paraná”, na edição do dia 10 de janeiro de 1926. “Mas hoje murado o ‘campo da Maria Bueno’, desapareceu a piedosa peregrinação. E a lenda e a adoração, estas só continuarão a existir no peito dos ingênuos devotos dessa bizarra santa”, sentenciou o jornal.
Publicada há quase 100 anos, sob o título “A adoração de Maria Bueno, uma crença que desaparece”, a reportagem se equivocou duplamente. A "peregrinação" não apenas foi mantida ao longo das décadas, como Maria Bueno consolidou a fama de milagreira popular de Curitiba e hoje tem o túmulo mais visitado do Cemitério Municipal São Francisco de Paula, no bairro São Francisco. O “pequeno altar” deu lugar a uma capela, inaugurada por seus devotos, em 1960, que recebe fiéis até mesmo de fora do Paraná.
Na segunda parte do especial pelo 170º aniversário do Cemitério São Francisco de Paula, o projeto Nossa Memória, da Câmara Municipal de Curitiba (CMC), resgata a história de Maria Bueno. Pobre e parda, ela saiu do anonimato depois de assassinada, no dia 29 de janeiro de 1893. “Logo começa a se falar que existiam coisas que aconteciam no lugar do assassinato e no túmulo da Maria Bueno, no cemitério. Velas que não se apagavam, uma roseira que teria nascido da poça de sangue dela. E isso vai atraindo a atenção das pessoas, que não demoram muito para começar a dizer que ela é uma intercessora, que ela alcança graças para as pessoas”, explica a pesquisadora cemiterial Clarissa Grassi, responsável pelas visitas guiadas à necrópole mais antiga da cidade.
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“Maria da Conceição Bueno foi sepultada nesse cemitério Municipal São Francisco de Paula em 29/1/1893, na quadra 13, rua 2, lote 31, com a placa 3903. Em 1960, foi transladada para a nova capela”, indica a anotação feita no Livro de Sepultamentos nº 9 do Cemitério Municipal São Francisco de Paula (1953-1966). “A nova capela foi construída pelo sr. Arnaldo Azevedo, presidente da Irmandade de Maria Bueno”, acrescenta o registro.
O crime aconteceu na madrugada do dia 29 de janeiro de 1893 e foi noticiado pela imprensa curitibana. “A polícia desta capital trata presentemente de descobrir o autor de um horroroso assassinato que, pelo que parece, foi perpetrado por desumana criatura. O fato é o seguinte: ontem de manhã apareceu assassinada Maria Bueno, de cor parda, em uma travessa da rua Campos Geraes, desta cidade, tendo a cabeça quase completamente separada do corpo. Maria, segundo consta, era uma dessas pobres mulheres de vida alegre, mas inofensiva criatura, de quem a polícia não tem a menor queixa em seus arquivos”, estampou, no dia seguinte ao assassinato, o jornal “Diario do Commercio”.
“A mutilação é grande no pescoço da vítima e, conforme, se depreende de certos indícios, ela tivera uma luta tremenda com o assassino e tanto mais se justifica essa afirmativa quando se veem nas mãos da infeliz talhos profundos como de cortante navalha, que fora segurada nas tréguas medonhas do desespero”, continuou a notícia sobre o “bárbaro acontecimento”. Sem mencionar o nome do suspeito, o jornal acrescentou que a suspeita da polícia era de “uma triste cena de ciúmes”.
No dia 1º de fevereiro de 1893, o jornal “A Republica” também noticiou o crime. “Na madrugada de 29 do mês que acaba de findar-se, deu-se nesta capital, em um capão do mato afastado da rua dos Campos Gerais [hoje a avenida Vicente Machado], o assassinato de uma mulher de nome Maria Bueno. As autoridades policiais, tendo conhecimento do fato, dirigiram-se ao local e, depois das precisas investigações, fizeram transportar o cadáver para o necrotério, verificando-se que o crime foi cometido na madrugada do referido dia e que a morte fora devida a uma quase decapitação”, afirmou a publicação.
Com o título de “Assassinato”, a matéria de “A Republica” indicou o nome do suspeito pela morte de Maria Bueno. “O senhor chefe de polícia está procedendo, na respectiva repartição, as precisas indagações, achando-se indiciado como autor do crime o anspeçada [graduação entre soldado e cabo] do 8º Regimento de Cavalaria, Ignacio José Diniz, que, estando de guarda no quartel, fugira à meia-noite, apresentando-se às quatro horas da madrugada, mais ou menos. Este praça estava amasiado com a infeliz Maria e com ela queria casar-se ultimamente. É voz geral ser Diniz o culpado, mas ao certo nada se pode dizer, pois dos depoimentos das testemunhas nenhum esclarecimento ainda tem [se] colhido”, concluiu o jornal curitibano.
Pelo registro do Livro de Sepultamentos nº 4 do Cemitério Municipal São Francisco de Paula (1891-1898), Maria “Boeno”, como seu nome foi grafado, tinha 30 anos, era parda, católica, brasileira e morreu em função de ferimentos no pescoço. A filiação foi indicada como “não declarada” e o estado civil da mulher, deixado em branco. Ela foi sepultada “por esmola”, ou seja, de forma gratuita.
Na edição do dia 19 de maio, o jornal “A Republica” voltou a falar das investigações sobre o assassinato. “O cidadão comissário de polícia, tendo concluído no dia 11 do corrente as indagações policiais relativas ao aparecimento de diversas peças de fardamento em um poço do quartel do 8° Regimento de Cavalaria, fez remessa dos autos ao promotor público, por intermédio do dr. juiz de Direito desta comarca. Das averiguações feitas pela referida autoridade, verificou-se que essas peças de fardamento pertencem a Ignacio José Diniz, anspeçada do referido Regimento e indiciado como autor do assassinato de Maria Bueno”, relatou.
No dia 12 de julho de 1893, Diniz foi julgado pelo Tribunal do Júri, que se reunia na Câmara de Curitiba, e inocentado. A ata da sessão revela que o juiz responsável pelo caso foi Arthur Pedreira de Cerqueira e o promotor, Gabriel Ribas da Silva Pereira. “[O juiz] fez vir à barra do tribunal o réu Ignacio José Diniz, o qual declarou não ter defensor, pelo que o juiz nomeou para defensor João Antonio Xavier”, cita o documento, que faz parte do acervo da Casa da Memória, da Fundação Cultural de Curitiba (FCC).
O conteúdo do interrogatório de Diniz, “que recebia a pergunta [do juiz] e dava a resposta”, não consta na ata da sessão do Tribunal do Júri. Sabe-se que seis testemunhas de acusação compareceram, mas não há informação sobre o depoimento delas - tampouco fica claro se elas chegaram a ser ouvidas. O documento histórico relata que o promotor pediu a condenação de Diniz, enquanto Xavier “baseou a defesa mostrando a inocência do réu”, com direito à réplica de Pereira e a contra-argumentação pelo defensor indicado pelo juiz.
“Em seguida, o juiz de direito consultou ao júri se estava suficientemente esclarecido e se desejava ouvir as testemunhas de acusação que estavam recolhidas à sala para este fim determinado, sendo pelo júri declarado que estavam satisfeitos e habilitados a julgar o processo”. “Leu o presidente do júri as respostas dadas aos quesitos e em seguida o juiz escreveu a sua sentença inocentando o réu, [...] e mandou preparar o alvará de soltura em favor do réu”, completa a ata da sessão daquele 12 de julho.
O jornal “A Republica” lamentou o resultado do julgamento. “Os debates estiveram frouxos, deixando mesmo muito a desejar em uma causa importante como esta e que justamente emocionou o espírito público”, criticou. “Autor do bárbaro assassinato de Maria Bueno, o réu Diniz foi absolvido por 11 votos”, informou, ainda, a matéria. Ou seja, pelo número de jurados que constam na ata do Tribunal do Júri, apenas 1 deles teria apoiado a condenação do anspeçada do 8º Regimento de Cavalaria.
“Semelhante procedimento do júri causou profunda estupefação nesta capital, onde era geral a crença de que Diniz era o assassino de Maria Bueno. Contra ele havia um acervo de provas”, continuou o jornal. “Não queremos magoar os jurados que tomaram parte no Conselho, que são soberanos em suas decisões, mas como jornalistas não podemos deixar passar em silêncio este fato, pois a absolvição de Diniz importa grave perigo para a sociedade e incentivo à reprodução de novos crimes.”
Maria Bueno: lendas e mito em torno da milagreira de Curitiba
Outrora uma área afastada do quadro urbano, a rua Campos Geraes recebeu da Câmara de Curitiba, em 1902, o nome de rua Santos Dumont, em homenagem ao Pai da Aviação. Em 1906, passou a se chamar avenida Vicente Machado, que havia sido presidente da Província do Paraná. Localizado entre as ruas Visconde do Rio Branco e Visconde de Nácar, o palco do feminicídio de Maria Bueno também já foi ponto de peregrinação dos fiéis. Hoje sede de um estacionamento comercial, o local do assassinato já chegou a contar com uma pequena capela, onde eram acesas velas à milagreira popular.
“Os relatos dos jornais indicam que ela seria amásia de seu algoz, o soldado Ignacio José Diniz. As pesquisas posteriores à sua morte indicam que ela teria sofrido um assédio por parte do rapaz e que teria morrido defendendo sua honra. O crime bárbaro, ao ser noticiado, levou muitas pessoas ao local do assassinato, onde foi erigida uma cruz de madeira. Velas que não se consumiam ou o aparecimento de rosas vermelhas no local se difundiram. Seu túmulo também passou a ser visitado”, relata o livro “Guia de visitação ao Cemitério Municipal São Francisco de Paula”.
Em 15 de fevereiro de 1923, a matéria “Coisas feias”, do “Commercio do Paraná”, pediu providências contra o “tão fervoroso quanto ridículo culto a um local, só pelo acidental fato de nele, numa manhã, ter sido encontrado, esquartejado, o corpo de uma mulher”. Segundo a publicação, artigo assinado por um “respeitável cavalheiro”, em 1898, sob o pseudônimo de K. Naval, relatou que naquela época já existia a peregrinação ao local onde havia sido degolada, anos antes, “uma infeliz mulher, de costumes fáceis, por nome Maria Bueno”. O próprio “Diario do Commercio”, primeiro jornal a noticiar o crime, em 1893, escreveu que a vítima era “dessas pobres mulheres de vida alegre, mas inofensiva criatura”.
Já o “Correio do Paraná” assinalou, na edição de 9 de agosto de 1938: “Maria Bueno é, em Curitiba, um paradoxo”. O jornal dizia que as pessoas acendiam velas a uma “concubina de soldados” e definiu Maria Bueno como a “santa das rameiras”. A reportagem “Maria Bueno, a Gabriela curitibana”, publicada pelo historiador Ruy Wachowicz na revista “Nicolau”, em outubro de 1992, relatou que a região da rua Campos Geraes era formada por “modestas construções de madeira, [...] muito isoladas, cercadas de brejos formados pela água que vinha do Alto Cubatão”. “Esse ambiente isolado e segregado favorecia a instalação de ‘casas suspeitas’. Operários dos engenhos de mate e soldados dos quartéis formavam a base de sua clientela”, discorreu o artigo.
Citando que o estudo foi baseado em documentos oficiais da época do crime e notícias jornalísticas, o historiador escreveu que a milagreira “habitava, no final da Rua Saldanha Marinho, uma casa de madeira, situada bem próxima da Chapada do Cubatão e da rua Campos Gerais”. “Ali vivia maritalmente com seu companheiro, natural do Estado da Paraíba: Ignácio José Diniz, anspeçada do Exército Brasileiro”, pontuou. “Maria Bueno era uma pessoa muito simpática, de expressão bondosa e corpo bonito. Demonstrava especial carinho no seu relacionamento com as crianças e com as pessoas mais próximas. Sua figura física e a conduta psíquica lembram, sem dúvida alguma, a personagem Gabriela, criada pelo escritor baiano Jorge Amado, em um dos seus romances”, comparou Ruy Wachowicz.
“A extroversão e a alegria de Maria Bueno perturbavam o cabo Diniz, que exigia cada vez mais a exclusividade das atenções de sua companheira. Esta, por seu lado, foi cansando dos ciúmes de Diniz e demonstrava sinais de querer separar-se dele. Nesse contexto, o cabo Diniz, roendo-se de ciúmes, resolveu ‘lavar a honra’, perpetrando um crime passional: típica ação de um machão dos velhos tempos", continuou a reportagem de "O Nicolau".
“Os milagreiros, a gente fala que eles são um fenômeno muito comum em cemitérios. Eles são um tipo de devoção marginal, porque estão à margem da Igreja, porque é o povo que alça o milagreiro a essa posição e assim os mantém”, esclarece a pesquisadora Clarissa Grassi. No entanto, ela avalia que “aqui em Curitiba, em função do histórico de ela ter sido apontada como prostituta, não colaborou muito para que Maria Bueno caminhasse para a beatificação, como outros milagreiros caminham”, caso um milagre seja comprovado.
Mesmo sem o reconhecimento oficial, a capela da milagreira Maria Bueno é o local mais visitado entre os mais de 5 mil túmulos do Cemitério Municipal São Francisco de Paula. “O novo terreno seria uma doação da Prefeitura de Curitiba. Na parede em frente à construção, centenas de ex-votos [placas para o pagamento de promessas ou em agradecimento a uma graça alcançada] cobrem a parede até o velário, junto ao muro”, destaca o “Guia de visitação ao Cemitério Municipal São Francisco de Paula: arte e memória no espaço urbano”.
Conforme a classificação dos túmulos criada por Grassi, o de Maria Bueno é um “jazigo monumento”. “Suas linhas arquitetônicas são simples e pouco elaboradas. Trata-se de um grande oratório, provavelmente de concreto, com as quatro faces em vidro. O oratório guarda a imagem de Maria Bueno. Representada em pé, segurando um lírio junto ao corpo, a estátua tem cabelos curtos, vestes longas azuis e pele clara”, cita o livro de Clarissa Grassi.
Qual foi o destino de Diniz, assassino de Maria Bueno?
Assim como a história de Maria Bueno, o destino de Diniz também é cercado por lendas. Entre livros, antigas reportagens e trabalhos acadêmicos, um dos relatos é que ele permaneceu preso pelo crime contra Maria Bueno e foi solto pelos maragatos, os homens do general Gumercindo Saraiva, que em 20 de janeiro de 1894 ocuparam Curitiba, durante a Revolução Federalista. Outra versão é que o assassino teria fugido da cadeia.
Uma vez solto, Diniz teria se juntado aos maragatos, mas sido fuzilado pelo próprio Saraiva, meses depois, ao lado de outro soldado. A morte seria uma punição por um latrocínio cometido contra um morador da estrada da Graciosa, de quem a dupla teria tirado a vida para roubar uma mula.
Formalmente, no entanto, o registro que se tem é da ata da Sessão do Júri em que Diniz foi inocentado, no dia 12 de julho de 1893. Na sequência, o documento informa que o juiz “mandou preparar o alvará de soltura em favor do réu”. Sobre os fuzilamentos de 1894, o Livro de Sepultamentos nº 4 do Cemitério Municipal São Francisco de Paula (1891-1898) traz apenas a seguinte informação: “Nas sepulturas nos 4484, 4485 e 4486 estão enterrados um oficial e dois soldados fuzilados no 8º Regimento de Cavalaria no dia 24 do corrente [mês de abril de 1894]”. Ou seja, os mortos não têm identificação.
Tampouco o nome de Diniz consta entre os óbitos em Curitiba, naquele período, tanto pelos registros da Igreja Católica quanto pelo Cartório de Registro Civil. Além disso, não houve jornais em circulação na cidade em abril de 1894, em função da Revolução Federalista. Na reportagem do Nossa Memória “'Para a História’ a saga de um livro oculto por 85 anos”, o jornalista João Cândido Martins escreveu, em 2012, sobre a ocupação da capital pelos maragatos.
** Veja aqui as referências da matéria "Especial 170 anos do Cemitério Municipal de Curitiba: quem foi Maria Bueno".
Aniversário de 170 anos do Cemitério Municipal é tema do CMC Podcasts
Mais um especial do Nossa Memória, projeto de resgate da história da Câmara e da cidade de Curitiba, desembarca no CMC Podcasts. O próximo episódio do Curitibou?, que vai ao ar na manhã desta quinta-feira (5), fala do aniversário de 170 anos do Cemitério Municipal São Francisco de Paula. Referência no tema, a pesquisadora cemiterial Clarissa Grassi é a entrevistada das jornalistas Fernanda Foggiato e Michelle Stival. Grassi se dedica há 22 anos aos estudos da área. Ela é autora de livros sobre a história do cemitério mais antigo de Curitiba e também a responsável pelas visitas guiadas ao São Francisco de Paula.
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