Espanhola: A pandemia das pandemias que atingiu Curitiba

por Michelle Stival da Rocha — publicado 04/05/2020 21h25, última modificação 11/11/2020 11h47 Reprodução do texto autorizada mediante citação da Câmara Municipal de Curitiba.
Espanhola: A pandemia das pandemias que atingiu Curitiba

Ao mesmo tempo em que Curitiba comemorava o final da Primeira Guerra Mundial, noticiava os primeiros casos da gripe espanhola no Brasil. Jornal . (Reprodução do jornal Diário da Tarde, Hemeroteca Digital)

“Deus queira que esse caso de ‘grippe hespanhola’ seja como o ruído do tambor, vazio por dentro.” A frase, pinçada de uma notícia do jornal curitibano A República, de 28 de setembro de 1918, delatava o começo dos casos de gripe espanhola em Curitiba. A “mãe de todas as pandemias” – como foi batizada mais tarde – tem características parecidas com as da atual pandemia de covid-19, causada pelo novo coronavírus, mas a humanidade perdeu muito naquele momento por não procurar o isolamento social, contabilizando 20, 30, 100 milhões de mortos, não se sabe ao certo.

Em setembro de 1918, a gripe espanhola estava apenas começando na capital paranaense, trazida num rastro fúnebre do Rio de Janeiro, considerado o epicentro da moléstia no Brasil. Lá, chegou-se a registrar mil mortos num só dia, e os cadáveres se amontoavam em frente às casas. Notícia de outro jornal curitibano, o Diário da Tarde, de 19 de outubro daquele ano, com a manchete “A Gripe Hespanhola por toda parte”, detalhou a situação que se alastrava naquele momento por todo Brasil, especialmente na capital carioca: “a molestia se manifestou com uma intensidade nunca verificada em outras epidemias. 500 mil pessoas no Rio sentem o mesmo mal. O commercio fechou, paralysou se o trânsito...”. Relatou ainda casos inciais em Curitiba: “Em Coritiba ha influenza hespanhola”, citanto “pessoas recemvindas do Rio de Janeiro” que “enfermaram e guardam o leito”.

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Decreto do prefeito João Antônio Xavier suspendendo o funcionamento dos “cinemas e outras casas de diversões desta capital”. (Reprodução do livro Leis, Decretos e Actos da Câmara Municipal de Coritiba de 1915 a 1916)

A epidemia se espalhou no país por causa de um navio inglês chamado Demerara, vindo de Portugal, que parou em Recife, Salvador e Rio de Janeiro em setembro, com marinheiros que desembarcaram doentes. O nome de batismo não delata a verdadeira origem da doença – a informação mais divulgada hoje é de que surgiu em campos de treinamento militar no Kansas,  Estados Unidos. O mundo enfrentava a 1ª Guerra Mundial e a Espanha, por não estar entre os combatentes, foi o único país a noticiar inicialmente os casos (embora já estivessem espalhados por vários países), enquanto os jornais das nações em guerra foram proibidos de dissipar a notícia da doença para não causar pânico nas tropas.

Em Curitiba, o Diário da Tarde de 29 de outubro destacou comunicado do Ministério da Justiça e Negócios Interiores: “É impossível evitar a propagação da epidemia de grippe por não existir um preventivo seguro capaz de evitar a infecção.” No entanto, pedia “tranquilidade”, “não fazer visitas”, além de “evitar toda fadiga” e “tomar um laxante a cada 4 dias afim de trazer o tubo digestivo sempre desembaraçado.”

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O Dr. Trajano Reis, da Diretoria Geral do Serviço Sanitário publicava quase que diariamente recomendações aos curitibanos sobre como cuidar da saúde na pandemia. (Reprodução do jornal A República, Hemeroteca Digital)  

“Não frequentem locais onde haja aglomeração de pessoas. Mantenham o mais escrupuloso asseio pessoal, lavem a boca, garganta e fossas nasais com um desinfetante, diversas vezes ao dia e principalmente antes das refeições, que nunca devem fazê-las nos ambientes infectados. Lavem frequentemente as mãos, sobretudo antes de usar qualquer alimento”, aconselhou o Dr. Trajano Reis, da Diretoria Geral do Serviço Sanitário, no jornal A República de 21 de outubro – seus comunicados nos jornais eram quase que diários e ele ficou famoso pelo trabalho de combate e prevenção na capital.

No livro Leis, Decretos e Actos da Câmara Municipal de Coritiba de 1915 a 1923 constam três decretos de 1918 assinados pelo prefeito da época, João Antonio Xavier, sobre as restrições impostas na cidade. O primeiro foi no dia 24 de outubro, suspendendo o funcionamento dos “cinemas e outras casas de diversões desta capital”. Também aconselhava “insistentemente” que se evitasse aglomerações, principalmente à noite.

O decreto seguinte, de 9 de novembro, autorizou, aos domingos e feriados, o comércio de “seccos e molhados e pharmacias a permanecerem com seus estabelecimentos abertos enquanto perdurar a epidemia de grippe ora reinante”. Um ato do prefeito, de 11 de novembro daquele mesmo ano reforçava a determinação do fechamento das casas de diversões até o dia 30 do mesmo mês, a despeito de “petições apresentadas pelos proprietários” dos referidos estabelecimentos.

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Anúncios prometiam soluções milagrosas: “Para evitar efficazmente as fataes recahidas de grippe recomenda-se aos convalescentes as afamadas bolachas Lucinda.” (Reprodução do jornal Diário da Tarde, Hemeroteca Digital).

Em novembro, ao mesmo em tempo que o Mundo comemorava o fim da Primeira Guerra Mundial, também chorava seus mortos da pandemia. “A cessação da guerra com a Alemanha foi firmada. O regozijo pela terminação da guerra é enorme em todas as grandes cidades do mundo”, noticiou o Diário da Tarde numa sexta-feira, 8 de novembro, assim como relatou casos de gripe espanhola por todo o estado do Paraná e o que estava sendo feito para combatê-la.

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No dia 7 de abril deste ano, no meio da pandemia do novo coronavírus, o prefeito Rafael Greca publicou em seu perfil pessoal do Instagram esta foto: “Não é a primeira vez que nossa amada Cidade enfrenta um virus. Em 1918 lutamos contra a Gripe Espanhola. Perdemos 384 pessoas.”

No dia 19 do mesmo mês,  trazia “uma estatística desconsoladora”, comparando o número de mortos com o número de nascimentos: “de 22 a 29 de setembro nasceram 31 pessoas e morreram 22;  de 30 de setembro a 6 de outubro, nasceram 36 e morreram 21”; “… de 4 a 10 do mez corrente já temos 86 nascimentos e 62 óbitos”. Mas os dados misturavam os falecimentos por outras razões. Em 18 de dezembro, denunciou: “A Colonia Umbará, distante três léguas da capital, está assolada pela terrível peste hespanhola. Esta, de dia para dia vae dizimando uma grante parte dos colonos e caboclos dessa cidade.”

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Curitiba da década de 1910. Na foto, a Praça Osório em 1916, dois anos antes da pior pandemia que o mundo já conheceu. (Foto: Acervo Casa da Memória)

Remédios milagrosos
“Não há remédio específico. Todos são bons e nenhum presta. Sobretudo nos casos leves. Quer dizer que a grippe é como um tufão. Passa logo, quando não mata, o que tem se verificado nas epidemias brasileiras, em geral benignas”, escreveu Dr. Espindola em um artigo publicado no A República de 18 de outubro de 1918.

Não havia remédio específico? Logo apareceram no comércio fórmulas milagrosas apresentando soluções: “Cuidado com a Hespanhola! Use o poderoso ‘antiputrido’ Balsamo Santa Helena, desinfectante analgésico, inimigo do máu cheiro!”. “Influenza Hespanhola. É indispensável lavar-se seguidamente as fossas nasaes com espuma de sabonete de Creol.”

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“A Colonia Umbará, distante três léguas da capital, está assolada pela terrível peste hespanhola. (Diário da Tarde, 18 de dezembro de 1918/acervo Hemeroteca Digital)

Que tal os comprimidos Oxyform: “oxygenio solidificado, o melhor medicamento profilatico e curativo, contra todas as moléstias infecciosas adquiríveis por via boccal, taes como Ilfluenza hespanhola, grippe, coqueluche, peste pulmonar e cholera. Experimente, exclusivo no Paraná.”

Parece brincadeira, mas houve também uma fábrica de bolachas prometendo cura: “Para evitar efficazmente as fataes recahidas de grippe recomenda-se aos convalescentes as afamadas bolachas Lucinda.” Propaganda publicada no jornal Diário da Tarde de 20 de novembro de 1918.

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No Rio de Janeiro, epicentro da epidemia no Brasil, o povo foi às ruas e, aglomerado aos milhares, comemorou o fim da 1ª Guerra Mundial e a vitória dos Aliados. (Revista Careta, Rio de Janeiro n.544, 23 de novembro de 1918 / acervo Hemeroteca Digital)

Depois de dezembro, as notícias e propagandas nos jornais curitibanos a respeito passaram a ser cada vez mais escassas, dando a entender que, em Curitiba, teria voltado ao normal. Conta-se que na cidade foi 384 o número de vítimas fatais da gripe espanhola. Como afirmou Dr. Espindola, foi mesmo “como um tufão”.

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A mesma edição da revista carioca que publicou fotos dos festejos do final da guerra, publicou também fotos de doentes sendo tratados da influenza espanhola no hospital carioca do Méier. (Revista Careta, Rio de Janeiro n.544, 23 de novembro de 1918 / acervo Hemeroteca Digital)

Referências Bibliográficas:
A República, 28 de setembro de 1918, 18 de outubro de 1918, 21 de outubro de 1918, Hemeroteca Digital.

Diário da Tarde, 18 de outubro de 1918, 29 de outubro de 1918, 8 de novembro de 1918, 19 de novembro de 1918, 20 de novembro de 1918, 21 de novembro de 1918, 18 de dezembro de 1918. Hemeroteca Digital.

Histórias da Gente Brasileira, volume 3, Mary Del Priore.

Leis, Decretos e Actos da Câmara Municipal de Coritiba de 1915 a 1923. Acervo digital da Câmara Municipal de Curitiba, seção Nossa Memória.