Servidores da CMC recebem capacitação sobre direitos humanos
Olympio de Sá Sotto Maior Neto: “Lugar dos direitos humanos é nos orçamentos públicos”. (Foto: Carlos Costa/CMC)
“Direitos humanos não se referem a um patrimônio pecuniário e sim a um patrimônio de dignidade. Direitos humanos são ética e nada é tão violado como os direitos humanos no dia a dia. Na nossa prática social, no trânsito, na repartição pública. O índice de violação de direitos humanos é altíssimo. Nenhum direito é tão pouco reprimido e punido quanto os direitos humanos.” A análise de Carlos Marés de Souza Filho, ex-procurador geral do Estado foi uma das frases mais marcantes do seminário “Direitos Humanos: um debate necessário”, promovido pela Câmara Municipal de Curitiba (CMC) nesta quinta-feira (28). O evento foi voltado a servidores efetivos, comissionados e terceirizados do Legislativo, e aberto à população em geral.
Transmitido pelas redes sociais e disponível, na íntegra, no YouTube da CMC, o seminário foi organizado pela Escola do Legislativo em parceria com o Ministério Público do Paraná (MPPR). A ideia foi promover uma discussão sobre o tema, especialmente para quem trabalha no atendimento ao público. Além de Carlos Marés, outros quatro especialistas na área dos direitos humanos também compartilharam conhecimentos sobre a temática e, ainda, denunciaram o que chamaram de “pandemia mundial de racismo”. A mesa de trabalhos foi aberta pelo presidente do Legislativo, Tico Kuzma (Pros), e mediada pelo gestor da escola e servidor, Carlos Barbosa.
Carlos Marés pediu que o debate sobre direitos humanos seja diário e, para além disso, deve sair do discurso e ser colocado em prática. A palavra – direitos humanos – só é necessária, na sua visão, porque os direitos são “violados”. “Na simplicidade, direitos humanos são nada mais nada menos do que as boas relações entre as pessoas. E as boas relações impõem respeito, sobretudo. O que faz a argamassa das relações é o respeito. É tratar todos os outros seres como gostaríamos que fôssemos tratados”, argumentou, para orientar que as pessoas façam esse “exercício de ética”.
Olympio de Sá Sotto Maior Neto, ex-procurador geral de Justiça, reforçou a necessidade de que a pauta cotidiana de debates, dentro e fora do Legislativo, deve permear os direitos humanos. “São direitos próprios, vinculados à dignidade da pessoa humana. Estamos aqui para falar do direito à alimentação adequada, à saúde, à moradia. Quando se trata disso, estamos falando desses direitos, que é uma responsabilidade do Estado, dos servidores públicos. Quando a Câmara de Vereadores resolve reunir seus servidores para ouvir este tema, temos que festejar. Esse tema tem que estar na mente e no coração de todos os servidores públicos, no atendimento cotidiano. Na realidade brasileira o que se faz de mais perverso é responsabilizar os marginalizados pela própria marginalidade, como se essas pessoas fizessem a opção de estar nesta posição”, explicou.
Para o especialista, ao buscar isonomia e igualdade de tratamento, o servidor público tem que privilegiar aqueles que “se encontram impossibilitados no exercício dos direitos elementares da cidadania”. “É um dever de todos nós, servidores públicos, fazermos esta opção preferencial em favor daqueles que identificamos como impossibilitados de exercitar os direitos que estão prometidos no ordenamento jurídico brasileiro e no ordenamento jurídico de direitos humanos no campo internacional que o Brasil adota”, continuou, para acrescentar que, na sua visão, “lugar dos direitos humanos é nos orçamentos públicos” para garantir a efetividade da execução de políticas públicas garantidoras dos recursos humanos.
Racismo
Carlos Marés afirmou que a violação de direitos humanos é equivalente ao racismo. “O violador de direitos humanos é irmão gêmeo do racista. Aquele que não consegue entender sua ação como violador de direitos humanos também não consegue entender sua ação como racista e muita vezes se desculpa a si mesmo, dizendo que não tem outra forma de agir senão violando os direitos humanos, senão sendo racista. E mesmo que não se reconheça como superior, reconhece os outros como superiores. Isso é uma doença dentro da sociedade”, declarou, ao pedir que a sociedade reaja e reflita sobre a violência e o racismo. “Este é o momento de tomar uma decisão pessoal: estamos ao lado dos direitos humanos, da fraternidade ou ao lado da violência?”.
Mestre em Direito e doutoranda na área pela UNB (Universidade de Brasília), Keyla Pataxó, que atua na defesa dos direitos da população indígena, compartilhou que, no momento atual, os indígenas lutam pela manutenção e efetivação de direitos conquistados, como o de “existir e poder conviver e viver da maneira que nós entendemos ser a melhor”. Única aluna indígena matriculada na PUC-MG (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) na sua época, ela lamenta que sua população sofre racismo, precisa “fazer discussões já superadas” e reafirmar, constantemente e em todos os espaços que ocupa, que tem direitos como todas as outras pessoas. “Indígena é indígena mesmo tendo acesso ao curso superior, a um celular, a um computador. É difícil para a sociedade aceitar que um indígena fala bem o português, se forma advogado, médico”, reforçou.
Cleci da Cruz Martins, da Rede de Mulheres Negras, lamentou a “pandemia mundial do racismo” em pleno século XXI, que ganha força com as redes sociais e outras ferramentas. Professora da rede municipal de ensino de Araucária, ela questionou sobre qual seria o padrão das pessoas que têm assegurados seus direitos e argumentou não pertinente “culpabilizar os não negros pelas atrocidades acometidas no passado histórico” do Brasil, mas é necessário que a população que não é negra comece a fazer esta leitura e debater a questão racial. “Quando as pessoas nos veem [se referindo às pessoas negras] pensam ‘eles fazem um debate racial, têm conhecimento’. Quando nós olhamos para pessoas não negras a gente pensa ‘eles fazem um debate sobre os privilégios da branquitude’? A gente não faz essa associação.”
“A partir do momento em que eu não me encaixo dentro de padrões e modelos de comportamento, recebo algumas sanções do Estado, porque esse corpo negro fala. E todo tempo esse corpo negro tem que estar em vigília para que eu me mantenha viva, para que eu não seja atacada. Mesmo tendo esses direitos assegurados por legislações eu não consigo efetivar porque isso demanda uma conscientização da sociedade. A sociedade precisa reconhecer as atrocidades acometidas, ter vergonha do racismo e entender os fatores que nos levam a ter determinadas posturas e ações perante a um determinado grupo. Minhas práticas são construídas a partir das relações nos espaços que eu frequento. E como os espaços que eu frequento e o Estado que eu vivo é racista, automaticamente as minhas ações vão reproduzir esta mensagem”, completou Cleci Martins.
Complementando a análise da professora, o especialista em História Afro-brasileira e diretor-fundador da Associação Cultural de Negritude e Ação Popular (Acnap), Paulo Borges afirmou que, mesmo após tantos avanços nos direitos humanos no Brasil, a população negra ainda não tem representação em “lugar nenhum: no Parlamento, nas universidades, nas reitorias, nos espaços de formação”. “Nós só temos a cara preta representada a partir da políticas de cotas raciais nas universidades. E aí que a gente percebe que os direitos humanos tão apregoados naquele documento bonito de 1948 está longe dos seus objetivos, de atender realmente a quem tem direito de reivindicar essa participação [na sociedade]”, frisou.
Na visão de Paulo Borges, o seminário da Escola do Legislativo tem que ter resultado para que servidores, vereadores e até o próprio prefeito Rafael Greca mudem seu olhar sobre Curitiba. “A possibilidade de discutirmos essas verdades é importantíssimo, porque é a partir daí que nós crescemos juntos. Devem acontecer mais formações aqui na Escola do Legislativo, porque é a partir destes eventos que nós podemos colher resultados profundos, do que nós somos, do que nós esperamos e do que nós temos capacidade de construir para a cidade e sociedade como um todo”, finalizou.
Também participaram do debate a vereadora Professora Josete (PT) e o deputado estadual e ex-vereador Goura (PDT). O evento foi aberto ao público e transmitido, em tempo real, pelos canais da Câmara Municipal de Curitiba no YouTube, no Facebook e no Twitter. Quem se inscreveu, de forma gratuita, na página da Escola do Legislativo receberá um certificado de participação.
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