Da sátira às ruas: o olhar sobre a mulher em três séculos
Transformações da sociedade ao longo do tempo impactam a pauta feminina . (Foto: Carlos Costa/Montagem: Michelle Stival da Rocha/CMC)
Em reportagem especial pelo Dia Internacional da Mulher, o Nossa Memória da Câmara Municipal de Curitiba (CMC) propõe uma reflexão sobre diferentes cenários: 1889, 1979 e hoje em dia. Resgatamos opiniões de três homens, na faixa etárias dos 30 aos 50 anos, sobre o papel da mulher na sociedade. Quem disse o quê? Qual fala se encaixa em cada momento da história brasileira?
— Na minha visão, o polo natural é o homem como líder e a mulher como liderada. Por quê? Porque não dá para ter dois líderes, [ter] dois caciques e nenhum índio. Tem que ter um cacique e um índio.
— Todo mundo sabe que elas são muito mais fracas e menos inteligentes que os homens. Sou contra que a mulher trabalhe fora. Os filhos precisam de uma mãe por perto.
— O papel da mulher de hoje não é o [mesmo] da [mulher] de ontem, aquelas criaturas que viviam em casa, trancadas a sete chaves, pálidas, anêmicas, de perna inchada.
Já advertia o ditado popular: “As aparências enganam”. Na verdade, a última frase, em apoio à emancipação feminina, é a mais antiga das três. Ela data do fim do século 19 e é uma fala de Manuel, personagem de 55 anos de “As doutoras”, sátira de costumes do escritor carioca França Júnior (1838-1890). Apesar de ser ficcional, a obra retrata as mudanças da sociedade naquele período, como a entrada da mulher nas faculdades brasileiras.
Por outro lado, a primeira frase, que defende o “polo natural” do homem como líder e a mulher como a liderada, é a mais atual. O trecho é de um vídeo publicado, em julho de 2022, numa social. O autor, de 34 anos de idade, se identifica como escritor, palestrante e apresentador.
Por fim, a segunda frase é de um comerciante de 33 anos, ouvido numa enquete, divulgada na edição do dia 8 de março de 1979, pelo jornal paranaense “Correio de Notícias”. À época, o Dia Internacional da Mulher era comemorado oficialmente pela segunda vez, após a data ser oficializada pela resolução 32/142, da Organização da Nações Unidas (ONU), em de 16 de dezembro de 1977.
“As doutoras”
Até o decreto-lei 7.247/1879, assinado pelo imperador Dom Pedro II, a legislação do país proibia a mulher de cursar o Ensino Superior. A primeira médica brasileira, Maria Augusta Generoso Estrela (1860-1946), precisou estudar em Nova York, Estados Unidos, onde se formou em 1881. Por lá, a mulher já ocupava espaço em diversas áreas. Conforme levantamento de 1890, do governo norte-americano, publicado pelo jornal paranaense “A Tribuna”, havia 4.555 “doutoras e especialistas em cirurgia”, 208 legistas, 337 dentistas e 127 engenheiras, dentre outras carreiras.
A trama de “As doutoras” foi levada aos palcos pela Companhia Dias Braga e viajou pelo país. Por aqui, foi encenada em apresentação única, no Teatro Hauer, no dia 4 de outubro de 1889. O anúncio para a peça convidava a “alta sociedade curitibana” para assistir à “primeira récita [espetáculo] da moda”.
A imprensa local elogiou a apresentação. “O assunto da peça, a questão feminista, é ali criticada com arte e espírito”, escreveu o jornal “A República”. “Está visto que concordamos com a crítica à questão feminista, principalmente quando feita como na interessante comédia de França Junior.”
Dividida em quatro atos, a história de “As doutoras” gira em torno da jovem médica Luísa Praxedes, de uma família burguesa do Rio de Janeiro. O impacto das transformações vividas pela sociedade brasileira, que se adaptava à ideia da mulher com diploma de curso superior, é retratado de forma cômica.
O pai de Luísa, Manuel Praxedes, orgulhava-se do diploma e da carreira da jovem, assim como apoiava a união entre a moça e o Doutor Pereira, também recém-formado em Medicina. O relacionamento, para ele, era “o verdadeiro casamento de conveniência”, cujo herdeiro seria um “médico de raça”.
O casamento, no entanto, entra em crise devido à rivalidade profissional. “Ou eu hei de abdicar à minha autonomia profissional, ou, o que é mais triste ainda, à minha posição de chefe na família”, diz Pereira para Luísa, em meio a uma das brigas do casal. A mãe, Maria Prexedes, entra em pânico com a possibilidade de divórcio, visto como “a desgraça de uma mulher”.
No fim das contas, a médica descobre estar grávida do primeiro filho e o casal se reconcilia. Para a decepção de Manuel, ela abdica de clinicar para se dedicar à “felicidade de criar e educar meu filho”. O pai insiste: “Que papel representas hoje?”. Ao que Luísa responde: “O único, meu pai, que pode e deve representar uma mulher”.
Com menos espaço na história, a outra doutora ao qual se refere o título é a bacharela (advogada) Carlota de Aguiar, 23 anos, considerada uma “canária” pela eloquência. Entretanto, assim como Luísa, ela tem um desfecho conservador, evidenciando o que se esperava das moças da sociedade burguesa, àquela época: casa-se com o bacharel Martins, dá à luz e abandona a carreira para se dedicar à família.
Dia da Mulher
“Dia da Mulher. Precisa?”, perguntou, na edição de 8 de março de 1977, o “Diário do Paraná”. “Se depender das entidades femininas da cidade, a data vai passar em branco. A Academia Feminina de Letras do Paraná adiou a comemoração para a semana que vem. O Centro Paranaense Feminino de Cultura não programou nada porque a sede está em reforma”, escreveu o jornal. “As presidentes das duas entidades têm um outro motivo para não gostar da comemoração. Todo o dia, dizem elas, é dia da mulher. Fixar data para a comemoração é chauvinismo dos homens.”
Há diferentes versões para a origem do Dia da Mulher. Autores discordam da explicação mais conhecida por aqui, de que a data homenagearia as mais de 100 operárias mortas em incêndio numa fábrica de Nova York, em 1911, durante greve pelas más condições de trabalho. Outra versão é que a homenagem remeteria à marcha de mulheres pelas ruas de São Petersburgo, em 8 de março de 1917, protesto que teria sido o estopim para a Revolução Russa.
Independentemente de sua origem, o Dia da Mulher já era celebrado desde a década de 1910 – no começo, sem que houvesse uma data unificada. Uma curiosidade, inclusive, é a lei federal 6.791/1980, que celebra o Dia Nacional da Mulher, no 30 de abril.
O fato é que o Dia Internacional da Mulher só foi oficializado com a resolução da ONU, de dezembro de 1977. Antes disso, a data chegou a ser discutida na 1ª Conferência Mundial da Mulher, no México, em 1975 – que as Nações Unidas haviam proclamado como o Ano Internacional da Mulher.
As delegações nacionais concordaram que “um dia especial deva ser dedicado à paz e que as mulheres devam explorar, como iguais aos homens, formas de superar os obstáculos”, com a sugestão que a celebração fosse no 8 de março. No entanto, a oficialização foi adiada porque as participantes enfatizaram que a solução dos problemas iria além da celebração anual.
Opinião pública
Nos anos 1970, a pauta de reivindicações no Brasil já não era centrada no direito ao voto feminino, efetivado em 1933, e à educação. Foi justamente naquela década que a presença das mulheres nas faculdades e universidades brasileiras, antes satirizada nos teatros do país, começou a crescer. Elas hoje são a maioria dos acadêmicos. Conforme o Censo da Educação Superior 2021, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), as mulheres representavam 72,5% dos alunos de cursos de licenciatura.
O momento era de outras transformações, como o divórcio, autorizado por meio da emenda constitucional 9/1977, depois regulamentada pela lei 6.515/1977. No mesmo ano, a Academia Brasileira de Letras elegeu sua primeira imortal: a escritora Rachel de Queiroz.
Já na Câmara de Curitiba, o período foi marcado pela ausência de vereadoras na sexta (1969-1972), na sétima (1973-1976) e na oitava (1977-1980) legislaturas. Sua última representante havia sido a professora Maria Clara Brandão Tesseroli, segunda vereadora da cidade, que deixou a Casa em janeiro de 1969. Somente em fevereiro de 1983 é que a bancada feminina retorna ao Legislativo. E, pela primeira vez, com duas representantes: a advogada Marlene Zannin e e a médica Rosa Maria Chiamualera.
Nesse contexto, o “Correio de Notícias” perguntou, nas ruas da capital: “A mulher ainda está perdendo?”. “Passa ano, entra ano e a situação da mulher ainda é discutida. No entanto, até agora, ela está em desvantagem devido à ação masculina, é claro”, observou o jornal, na edição do 8 de março de 1979. Publicada dentro da editoria Opinião Pública, a enquete divulgou a opinião de 13 pessoas, sendo 3 homens. Além de trecho de entrevista já citado aqui, do comerciante de 33 anos para quem a mulher não deveria trabalhar fora, foram ouvidos um estudante, de 18 anos, e um motorista de táxi, de 30 anos.
“O que vemos em certos casos é uma rebeldia generalizada. Lógico que a mulher tem os mesmos direitos que o homem. Só que não podemos ignorar que em certos casos não podemos tomar uma posição mais firme porque existem algumas restrições de ordem social, às quais não podemos fugir”, apontou o estudante. O motorista de táxi, por outro lado, afirmou desconhecer a celebração naquele 8 de março, mas se disse “muito feliz em saber, a mulher merece, além de uma data especial, muito carinho, apoio no lar e no trabalho. [...] ela merece os mesmos direitos que o homem tem”.
Para uma dona de casa de 63 anos, “a mulher deve, acima de tudo, ser feminina, por isso não deve se igualar totalmente ao homem”. “Mas, como tudo evoluiu, eu também mudei um pouquinho”, comentou. “Hoje em dia, eu ajudo minha filha na loja e aprovo o trabalho dela com satisfação.” Outra dona de casa, de 32 anos, ponderou: “Sobre o Dia Internacional da Mulher pouco posso falar porque é uma comemoração nova. Mas acredito que com o tempo se tornará uma festa muito importante”. Uma moça de 18 anos, estagiária do curso de Relações Públicas, acreditava que a “liberalização” feminina era “só da boca para fora”, e que a data tinha um papel importante para mudar a mentalidade tanto de homens quanto de mulheres.
Também universitária, jovem de 21 anos, cursando Odontologia, afirmou discordar das feministas. “O que elas pretendem é marginalizar o homem, impedindo, assim, a igualdade de direitos”. “A discriminação contra a mulher existe, mas ela não é tão prejudicial como falam”, declarou uma estudante de 20 anos. Já uma funcionária pública de 27 anos celebrou avanços no mercado de trabalho. “Financeiramente, ela vem conseguindo, gradativamente, tornar-se independente. Sou feminista até certo ponto, sem exageros”, avaliou.
Na opinião de uma doméstica de 22 anos, “a emancipação da mulher é um fato consumado, já que as coisas mudaram”. Outra entrevistada – professora, de 48 anos – apontou: “A mulher é uma incompreendida nesta sociedade masculina e machista em que vivemos. Não fosse a mulher não haveria organização política. Para você ver, a mulher ganha sempre menos que o homem”. Ela continuou: “Eu acho que toda mulher, mesmo solteira, deveria trabalhar apenas cinco horas por dia. O resto do tempo seria dedico para o lar ou para seu aprimoramento intelectual. E também para se cuidar fisicamente”.
Violência digital
O tema escolhido pela ONU Mulheres para o Dia Internacional da Mulher em 2023 é “Por um mundo digital inclusivo: inovação e tecnologia para a igualdade de gênero”. As ações em torno do tema devem chamar a atenção para a relação entre o impacto da lacuna de gênero digital e à proteção dos direitos de mulheres e meninas em espaços digitais, abordando o crescimento da violência online.
Conforme o relatório “UN Women’s Gender Snapshot 2022”, da ONU Mulher, a exclusão feminina do mundo digital eliminou U$ 1 trilhão do produto interno bruto (PIB) de países de baixa e média renda, na última década. “Reverter essa tendência exigirá enfrentar o problema da violência online, que um estudo, com 51 países, revelou que 38% das mulheres já experimentaram pessoalmente”, alerta.
Ainda segundo o levantamento, a violência online aumentou durante a pandemia da covid-19, uma vez que a mulher passou mais tempo conectada. “Apenas 1 em cada 4 [das vítimas] reportou às autoridades e cada 9 em cada 10 optaram por limitar sua atividade online, deste modo aumentando a exclusão digital de gênero”, acrescenta o relatório. O tema também estará em pauta na 67ª Comissão da ONU sobre a Situação das Mulheres (CSW), que se reúne de 6 a 17 de março.
E hoje, o que as pessoas têm a dizer? Mais de 40 anos depois da enquete realizada pelo “Correio”, a Diretoria de Comunicação Social da Câmara de Curitiba repetiu a pergunta: “A mulher ainda está perdendo?”.
Confira o resultado no vídeo a seguir:
Nossa Memória
Iniciado em 2009, pela Diretoria de Comunicação Social, o Nossa Memória é um projeto de resgate e valorização da história da Câmara Municipal e de Curitiba, já que ambas se entrelaçam. Além das reportagens especiais, a página traz, por exemplo, “Os Manuscritos”, que reúnem documentos desde a fundação oficial da cidade, em 1693, e o “Livro das Legislaturas”, com os vereadores da capital paranaense desde 1947.
** Confira aqui as referências usadas para a pesquisa histórica.
Reprodução do texto autorizada mediante citação da Câmara Municipal de Curitiba