Curitiba e os 125 anos da abolição da escravatura
A Lei Áurea, assinada em 13 de maio de 1888 pela Princesa Izabel, por ocasião de uma ausência de seu pai, Dom Pedro II. O documento é conservado e estojo feito de couro com detalhes em folha de ouro (Imagem – Arquivo Nacional, Rio de janeiro)
Os escravos foram o motor da economia brasileira durante o período colonial e ao longo de todos os ciclos econômicos do império. Segundo a historiadora Altiva Balhana, “a utilização do trabalho escravo estendeu-se a todos os setores produtivos da comunidade paranaense, da mineração à agricultura de subsistência, da pecuária aos afazeres do mestiços e diferentes artesanatos e ofícios rurais e urbanos. Até mesmo às funções de administração”. Listas Nominativas e outros levantamentos produzidos em períodos diversos da história de Curitiba (como o rol de “Bens Rústicos”, de 1818) mostram que, em comparação com outras regiões do Brasil, a presença negra foi menor numericamente.
Após a constatação de que o planalto curitibano não era tão provido de ouro quanto se imaginava, uma boa parte da mão de obra escrava foi deslocada para o interior de São Paulo ou para os Campos Gerais, nas fazendas e cidades localizadas em torno do Caminho do Viamão, como Castro, Ponta Grossa e Lapa. O trajeto ligava as cidades de Sorocaba (SP) a Viamão (RS) e por ele transitavam tropeiros que conduziam manadas de muares e bovinos.
Cidades que ainda exploravam a extração de ouro (no interior de Minas Gerais), ou dotadas de vastas plantações de cana e café demandavam mais escravos. Em Curitiba, por outro lado, se configurou uma agricultura de subsistência que não justificava uma presença maciça de escravos, fato que não descaracteriza a condição deplorável do modelo escravagista em Curitiba Nesse sentido, concordam Magnus Pereira, Elizabete Miquelin Costa e Carlos Roberto Antunes dos Santos, entre outros historiadores contemporâneos. Para o pesquisador Horácio Gutiérrez, “não há estimativas confiáveis sobre os (...) negros trazidos da África até a primeira metade do século XVIII. A ausência de estatísticas torna difícil a tarefa de estimar o peso percentual da população escrava no Paraná do século XVIII”.
A partir dos primeiros anos do século XIX, outros levantamentos foram realizados, mas, mesmo estes recenseamentos se pautaram por critérios estatisticamente questionáveis, como incluir na contagem apenas os negros economicamente ativos. De qualquer modo, os produtores de erva-mate (independente das razões) optaram pelo trabalho livre. Ainda segundo Gutiérrez, “o modesto estoque de escravos na composição demográfica do Paraná não pode ser menosprezado para se entender a estrutura econômica e social da região. O Paraná, apesar do percentual baixo de cativos, nunca superando um quarto da população total, foi uma sociedade escravista, e sua correlação com a propriedade da terra e os usos que a ela foram dados assim o demonstra”.
“Africanos Livres” e “Ingênuos”
O texto de apresentação do Catálogo Seletivo de Documentos Referentes aos Africanos e Afrodescendentes Livres e Escravos (publicado pelo Arquivo Público do Estado do Paraná em 2005), informa que por pressões internacionais, o Brasil declarou livres todos os escravos vindos de fora do Império em 7 de novembro de 1831. A ideia era coibir o tráfico de escravos trazidos da África. Embora tenha sido comemorada pelos abolicionistas, a lei foi constantemente descumprida e, além disso, gerou uma distorção jurídica. Conforme esclarece o Catálogo, “os africanos que estavam a bordo dos navios capturados e condenados por tráfico ilegal foram emancipados e formavam categoria especial de africanos livres, porém, ficavam sob a tutela do Estado Imperial e foram distribuídos para trabalhar nas instituições públicas e particulares por 14 anos. Os africanos livres que não foram escravizados e sobreviveram ao tempo de serviço, foram emancipados definitivamente nas décadas de 1850 e 1860. Daí em diante, cresceu o número de ações de liberdade de africanos que reivindicavam o direito de serem reconhecidos africanos livres”. Em Curitiba, dois desses escravos permaneceram vinculados a órgãos públicos dois anos após o fim do prazo.
Outra situação incompreensível era a do “Ingênuo”, isto é, o filho de escrava nascido após a oficialização da Lei do Ventre-Livre, em 28 de setembro de 1871. Embora liberta, a criança estava sujeita à escolha do seu proprietário, que poderia ser entre títulos de renda pagos pelo governo em troca da sua liberdade, ou o uso de seus serviços até os 21 anos, opção mais usada pelos senhores de escravos.
Questão de forma e de oportunidade
O Século XIX foi rico em ações abolicionistas, mas nem sempre elas surtiram o efeito desejado, como se verifica nos exemplos acima. Ainda haveria outras etapas até a abolição da escravatura em 1888, mas a postura reticente do governo imperial fica clara quando lembramos que em julho de 1866, a Sociedade Abolicionista francesa Comité pour l’Abolition de l’Esclavage solicitou a intercessão de D.Pedro II junto à classe política brasileira e aos grupos de poder no sentido de extinguir a prática escravocrata, já que o Brasil permanecia como o último país da América do Sul a mantê-la oficialmente. Dom Pedro II respondeu por meio do seu Ministro para Assuntos Estrangeiros. Segundo o texto da resposta, a abolição era uma “questão de forma e de oportunidade”.
As pressões pela manutenção do sistema eram fortes e a sociedade civil passou a se manifestar em prol do movimento abolicionista. Evaristo de Moraes em “A campanha abolicionista: 1879 – 1888”, lançado pela UnB em 1986, destaca o nome dos seguintes abolicionistas em atuação no Paraná: o Visconde de Guarapuava, o Barão do Serro Azul, o Comendador Antônio Alves de Araújo, os Desembargadores: Vicente Machado, Itaciano Teixeira e Casimiro dos Reis Gomes e Silva, José Francisco da Rocha Pombo, Nestor Vitor dos Santos, Ciro Veloso, Manoel Correia de Freitas, João Régis, Brasilino e Eduardo Moura, Joaquim Soares Gomes, Professor José Cleto da Silva, Joaquim Bittencourt, Manoel do Rosário Correia, João e José Carvalho de Oliveira, Eduardo Chaves, Fernando Simas, Eduardo Gonçalves, Albino Silva, Mauricio Sinke, Guilherme Leite e Ernesto Lima.
Após a abolição, não foi desenvolvido nenhum plano de apoio aos negros recém-libertos. Permaneceram vulneráveis, excluídos do sistema educacional e à mercê de trabalhos sub-humanos. Muitas conquistas foram alcançadas, mas as consequências do sistema escravocrata se fazem sentir até hoje e, não por acaso, o poder público tem buscado desenvolver e implantar políticas de inclusão para os negros, além de criminalizar condutas de teor racista. Neste sentido, a Câmara Municipal de Curitiba aprovou no ano passado, projeto de lei que institui o dia 20 de novembro como data oficial para a comemoração da Consciência Negra, atitude que contempla o reconhecimento público das dificuldades do povos trazidos em condição escrava da África.
“É preciso uma ingenuidade perfeitamente obtusa ou uma má-fé cínica para se negar a existência do preconceito racial” disse Nelson Rodrigues em entrevista para o primeiro número do jornal O Quilombo, editado pelo Teatro Experimental do Negro, em 1948.
Referências Bibliográficas
"História do Paraná", de Altiva Balhana, Pinheiro Machado e Cecília Westphalen. Editado pela Grafipar, em 1969.
Texto do ativista negro Abdias do Nascimento. Publicado pela Folha de São Paulo, em 2009, por ocasião do lançamento do livro sobre o jornal "O Quilombo". Link aqui.
Catálogo Seletivo de Documentos Referentes aos Africanos e Afrodescendentes Livres e Escravos, preservado pelo Arquivo Público do Paraná. Está disponível na Coleção Pontos de Acesso, publicado em 2005.
"Preços de Escravos na Província do Paraná, de 1861 a 1887", de Carlos Roberto Antunes dos Santos. Dissertação apresentada em 1974, para o Mestrado em História da UFPR.
"Cor e Hierarquia Social no Brasil Escravista: o caso do Paraná, passagem do século XVIII para o XIX", de Cacilda Machado. Publicado pela Revista Topoi (UFRJ), em 2008.
"A Abolição da Escravatura e a Imprensa Paranaense", monografia apresentada por Elizabete Miquelin Costa, em 2010, na conclusão do curso de História pela UFPR. Link aqui.
"A campanha abolicionista: 1879 - 1888", de Evaristo de Moraes. Editado pela Universidade de Brasília, em 1986.
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