Crise hídrica II: as piores secas de Curitiba desde o século 19

por Fernanda Foggiato — publicado 05/11/2020 14h05, última modificação 09/05/2024 12h51
Ainda sem acesso à água encanada, como os moradores da cidade enfrentavam os períodos de estiagem?
Crise hídrica II: as piores secas de Curitiba desde o século 19

Impacto das estiagens tem relação com as características do sistema de abastecimento em cada período pesquisado. (Montagem: Leticia Bostelmann/CMC)

“A população que tanto sofre com a lama agora pede chuva. Dos males o menor, e se o bom tempo [seco] continuar, se complica nossa situação”, alertou, em agosto de 1892, o jornal “A República”. De acordo com a publicação, eram raras as fontes que não estavam “completamente seccas”. Além disso, os fornecedores de água potável circulavam apenas pelo centro. Chamados de pipeiros ou aguadeiros, eles dependiam das fontes públicas para abastecer os barris e revendê-los, em suas carroças, de porta em porta.

“A população, mesmo em tempos normaes de chuva, soffre privações, quando não se sujeita a lançar mão das águas impuras dos poços”, apontou o “Diario do Commercio”, em março de 1894, sobre a “calamidade verdadeira” do sistema de abastecimento de Curitiba. Segundo o jornal, a cidade havia atravessado uma “pequena secca”, fazendo com que os pipeiros não conseguissem abastecer os barris d´água nas fontes públicas. Com isso, eles teriam lançado mão de “charcos e banhados” para vender lama, por um valor elevado, aos moradores da capital.

Esses são alguns dos registros de como a população antigamente lidava com os períodos de estiagem, e que é tema da segunda parte do especial do Nossa Memória da Câmara Municipal de Curitiba (CMC) sobre a crise hídrica. Sem acesso à água encanada, cuja história é contada na próxima reportagem, o jeito era recorrer a fontes, chafarizes e poços. Ou, segundo noticiava a imprensa da época, se sujeitar à exploração dos pipeiros.

 

 

A ideia da pesquisa, cuja primeira parte abordou a intensidade e cenários da seca atual, partiu de fala do diretor-presidente da Sanepar, Claudio Stabile, em maio passado, durante audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado do Paraná (Alep). Segundo ele, “no estado, é uma das estiagens mais fortes dos últimos 30 anos. Mas para Curitiba e região metropolitana, nós temos historiadores remetendo aí ao século 19. [Seria] uma estiagem tão severa quanto essa”.

No século 19, apesar de as menores precipitações terem ocorrido em 1893 (1.266,4 mm) e em 1897 (1.157,7 mm), os registros de seca na imprensa local, conforme pesquisa na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, são mais intensos em 1892 (1.278,7) e em 1895 (1.385 mm). As matérias e artigos tinham como característica associar os períodos com deficit de chuvas à saúde pública, devido às fontes e poços lamacentos. Em função do abastecimento de água precário, muitas vezes traziam cobranças e críticas ao poder público – em especial à Câmara Municipal, que naquela época era a responsável pelo serviço.

Conforme o professor Pedro Augusto Breda Fontão, docente do Departamento de Geografia do Setor de Ciências da Terra e coordenador do Laboratório de Climatologia (Laboclima) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), a sistemática da medição pluviométrica já era confiável quando foi implantada em Curitiba, em 1889. No Brasil, comenta o especialista em secas, são raros os postos com dados tão antigos. As ponderações são à existência de falhas nos registros, nas duas primeiras décadas do século 20, e à mudança da estação de local, na década de 1970, “o que pode dar algum conflito nos dados”.

Sobre os registros frequentes da seca, na imprensa da época, apesar de o volume de chuva ficar um pouco abaixo da média histórica de chuvas na capital, de 1.452,5 mm, Fontão esclarece que “a estiagem prolongada acabou provocando impactos em um contexto em que boa parte da população vivia em ambientes rurais e que não havia o hábito de armazenar a água em represas e sistemas para o abastecimento urbano durante os meses menos chuvosos”, já que a primeira rede para levar água aos domicílios foi inaugurada em 1908. “Ainda, o deficit hídrico pode ter contribuído para o rebaixamento do lençol freático e das águas dos poços.”


“Secca medonha”
Em 1892, os registros de “secca” foram identificados a partir de agosto, mês em que a precipitação foi de 34,5 mm. O jornal “A República” apontou, na edição do dia 13, que os mananciais à disposição da população, como o chafariz da praça Zacarias, estavam praticamente estagnados. O da praça Osório estaria abandonado e sem torneira, servindo de depósito “a toda sorte de lixo”.

Ainda no final daquele mês, “A República” alertou à ausência de “lavaderias públicas”. A justificativa era que em épocas com muitos dias sem chuva e fontes secas, “como a que presentemente atravessamos”, as águas dos riachos se tornavam “diminutas e sujas”. Conforme o jornal, grande parte das roupas da população eram lavadas no rio Ivo, que – apesar de nos provimentos do ouvidor Pardinho, em 1721, terem sido indicadas “para beber” – mais pareciam “corrimentos de cloacas ou canos de esgotos”.

As posturas da Câmara Municipal de 1892, na seção destinada à higiene e à salubridade pública, reforçaram a proibição a se danificar, obstruir, lavar roupas ou “deitar immundicies” nas fontes e encanamentos de água potável. Também vedaram aos cervejeiros, nos períodos de seca ou de falta d´água, abastecerem-se nas fontes públicas. A multa para as duas infrações era de 15 mil réis (moeda brasileira naquele período).

A proibição aos cervejeiros, assim como a preocupação com a limpeza das fontes e rios, foi reforçada no Código de Posturas de 1895, outro ano do século 19 com registros de seca. Aos pipeiros, a lei obrigava que os barris estivessem cheios d´água no período noturno e que eles ajudassem no combate a incêndios. Àqueles encontrados com as pipas vazias ou que se omitissem, seria aplicada multa de 10 mil réis, mais a suspensão da licença de trabalho durante um mês. O mesmo valor era a recompensa estipulada ao primeiro carroceiro que se apresentasse para o combate às chamas. Os moradores com poços, se requisitados pela autoridade policial, também precisavam contribuir.

Em 1895, ano do século 19 em que a imprensa local mais publicou matérias e artigos sobre a seca em Curitiba, a precipitação foi de 1.385 mm, valor ligeiramente abaixo da média histórica. No entanto, choveu apenas 300,3 mm entre março e agosto, numa época em que o abastecimento era precário, enquanto o mês de outubro registrou 405,9 mm.

“Com trez mezes de secca, Curityba morreria de sêde”, afirmou “A República”, em 26 de janeiro de 1895. Frente aos escassos recursos do tesouro municipal, as críticas – e as cobranças – do artigo foram motivadas pelo projeto que previa o calçamento da rua da Liberdade, atual Barão do Rio Branco, com paralelepípedos. “Nem é essa a pior das ruas da cidade, nem a que mais reclama esse melhoramento”, afirmou. O abastecimento com água potável, por outro lado, era considerado “urgente e inadiável”.

Os registros da seca, naquele ano, começaram no final de abril, mês que registraria 11,3 mm de precipitações. “A questão já devia ter sido resolvida”, pontuou “A República”, para quem o abastecimento feito com as pipas sobre carroças era “atrasado e primitivo”, levando sofrimento à população. “A menor secca é suficiente para estancar os mananciaes e a população, sujeita à especulação e ao abuso dos pipeiros, bebe águas viciadas, prejudiciaes à saúde, colhidas em tanques e mesmo no [rio] Ivo, que como se sabe, é um ribeirão aproveitado para diversos misteres.”

Em 6 de maio, chuva com granizo, “depois de muitos dias de secca”, foi celebrada pelo jornal. Em agosto, a Câmara Municipal foi elogiada pela decisão de abrir poços públicos – o do Largo General Osório, aspirava-se, melhoraria o abastecimento no chafariz próximo. No início de setembro, “A República” voltou a destacar a importância dos novos poços, “ao menos provisoriamente”, após a seca que havia sido enfrentada. Entretanto, a publicação pediu providências ao prefeito quanto à atuação dos pipeiros, denunciando que eles passavam horas a encher seus barris, destinados à venda e ao uso próprio. A justificativa era que as bombas, pelo atrito continuado, em pouco tempo estariam imprestáveis.

No dia 14 de setembro de 1895, “A Tribuna” reclamou serem “nulos” os esforços do Município em prol da higiene, atrelando-a ao abastecimento precário. “Curityba atravessou uma crise medonha”, apontou, sobre a “secca terrível” dos últimos sete meses. Com as cisternas vazias, a população “não estava longe” de ficar sem água para beber e as lavagens, “estremecida” pelo temor do surgimento de “uma peste qualquer”.

“Não chovia, e a secca continuava a affligir a população”, retomou “A Tribuna”, dias depois. O jornal voltou a pedir melhorias no sistema de abastecimento, apontando a seca que havia sido enfrentada nos últimos meses e obras “não imprescindíveis”, como para o calçamento da cidade. Sem água “em profusão”, avaliou, os moradores de Curitiba cairiam na “enxerga do desleixo”, perdendo a noção de asseio.

“A partir de setembro [de 1895] as chuvas retornaram e houve uma grande recuperação desse deficit hídrico em outubro, com destaque para o dia 20, que registrou 127,1 mm”, relata o professor Pedro Augusto Breda Fontão. A tempestade ganhou destaque na primeira página de “A República”. Segundo o jornal, pelas fortes “mangas d´água” do último mês, Curitiba estava “inundada de lama”, com estradas danificadas pelas enxurradas. Até festejos religiosos e civis haviam sido prejudicados pelo mau tempo.

A chuva “da noite de 19 para 20 [de sábado para domingo]” teria alagado os salões inferiores do Museu Paranaense, cuja sede ficava no Largo da Fonte, atual praça Rui Barbosa, danificando móveis e “outros artefactos”. O temporal também adiou, de 20 para 27 de outubro, a estreia de “agradável”, conforme definição de “A República”, espetáculo de companhia de touradas.

As chuvas entre meados de setembro e ao longo de outubro também repercutiram em “A Tribuna”. Artigo assinado por Mestre Jeronymo, publicado em 12 de outubro, disse que o rio Ivo, até um tempo atrás um “pequenino filete de água turva” e um “foco de miasmas” devido à “terrível secca”, já parecia outro. Dia 22, o jornal também abordou o temporal daquele fim de semana, em que o Ivo teria transbordado “excessivamente”, alagando as “adjacências do leito por onde corre” e arrastando animais – galinhas e até uma cabra – dos quintais onde eram criados.

“Escassa ou intragável”
A primeira metade do século 20 teve os fenômenos de seca mais intensos em 1924 (902,4 mm) e em 1933 (795,2 mm), salientando-se que os registros do primeiro posto pluviométrico de Curitiba apresentam falhas (anos sem dados) entre 1901 e 1921. As matérias publicadas na imprensa local, conforme busca na Hemeroteca Digital, apontam problemas na rede de distribuição, além dos poços e fontes secos. A partir da estiagem de 1933, os jornais começam a abordar medidas de economia de água.

“Escassa ou intragável.” Foi assim, após “longa estiagem” em abril (36,2 mm), que “O Dia” se referiu à qualidade da água ofertada à população, em matéria de 16 de maio de 1924. As chuvas daquele mês, que atingiria uma precipitação 202,1 mm, a maior do ano, teriam aumentado o volume do “precioso e immundo líquido”, mas também afetado a pureza da água da Serra, cujas amostras trariam “bicharocos” desconhecidos.

Em agosto daquele ano, mês com uma precipitação de apenas 2,4 mm, após junho e julho também pouco chuvosos, com o registro de 54,2 mm e de 16,5 mm, respectivamente, foram retomados os alertas à seca. Em 21 de agosto, sob o título “Fome e sede”, “O Dia” publicou que, ante a “estiagem prolongada” e falhas na rede de abastecimento, “os poços ou outras fontes em que a população encontrava ainda algumas gotas de água” ameaçavam secar definitivamente.

Nos dias seguintes, o jornal continuou a noticiar a seca. “Na imminencia de uma epidemia” trouxe críticas à falta d´água e aos boeiros fétidos, além de apelo ao presidente do Estado. Em 29 de agosto, “O Dia” disse que a estiagem ganhava contornos de calamidade pública. No dia 31, a publicação relatou, na capa, que a falta d´água continuava a “torturar” Curitiba, apesar dos esforços do Corpo de Bombeiros e da boa vontade dos particulares. A matéria explicou que, contra o “martyrio” da sede, os bombeiros distribuíam água aos bairros mais distantes, onde a rede não chegava. Também a população com poços avantajados, como o depósito da Cervejaria Cruzeiro, se colocava à disposição dos vizinhos.

O jornal comemorou, em setembro (precipitação de 83,6 mm), o retorno das chuvas, mas na sequência, com um outubro mais seco (26,4 mm), retomou os apelos por melhorias na rede de abastecimento, em prol da saúde da população. De acordo com “O Dia”, até as torneiras dos domicílios das zonas altas – ou seja, próximos ao Reservatório do Alto São Francisco e os primeiros a serem contemplados pela rede de água da capital – vinham secando à noite. Restava o “recurso supremo” dos poços, cuja água, pela longa estiagem, faltava e estava “repugnante”, com cor e paladar duvidosos.

O jornal revelou uma “versão” que se alastrava entre as “comadres” das redondezas do final das avenidas Sete de Setembro e Visconde de Guarapuava, “que não acreditamos ser verdade”: os moradores estariam há três meses com as torneiras secas porque a água dos encanamentos da região teria sido desviada por engenheiros de um quartel.

Ainda naquele ano, após 107,7 mm de precipitações em novembro, “O Dia” denunciou temor que a água escassa, com qualidade ruim, trouxesse à cidade a epidemia de tifo. Para encerrar 1924, a publicação divulgou a realização de missa na Catedral, dia 20 de dezembro, em intenção de chuvas que aliviassem a estiagem, “implorando clemência ao Altíssimo”.

Em janeiro do ano seguinte, a imprensa noticiou que, após a cruel e longa estiagem, que havia esgotado os Mananciais da Serra e os poços da população, obras para melhorias no sistema de abastecimento estavam quase concluídas. Realizadas por determinação do presidente da Província, elas permitiriam a ampliação da água destinada ao Reservatório do Alto São Francisco, até então o único de Curitiba.

Na década seguinte, a capital registrou nova estiagem em 1933, com uma precipitação de 795,2 mm – em 2020, até o final de outubro, a cidade registrou 798,1 mm. Naquele ano, já com o Reservatório do Batel em funcionamento, a chuva se concentrou em fevereiro (229,7 mm) e em outubro (117,3 mm). Nos demais meses, as precipitações variaram entre 17,2 mm (agosto) e 72,7 mm (abril). Em comparação à seca atual, no entanto, foram registrados 192 dias chuvosos, mesmo que com alturas mínimas entre janeiro e outubro, conforme o posto do Inmet. Em 2020, no mesmo período, foram 87 os dias com chuva.

Em 25 de abril de 1933, “O Dia” apontou que o bairro Seminário vinha enfrentando, devido à estiagem, uma “grande” falta d´água. Fora do perímetro da rede de abastecimento, os moradores estavam com os poços secos e pediam auxílio às autoridades. Eles queriam receber água da Prefeitura de Curitiba ou do Corpo de Bombeiros, a exemplo do que ocorria em outros arrebaldes (periferias), como no Portão. Em 20 de maio, o jornal publicou apelo semelhante da população do Água Verde, que havia coletado assinaturas para abaixo-assinado e entregariam o documento ao prefeito Lothário Meissner.

Em 16 de junho, “O Dia” sugeriu que a capital adotasse medida implementada por Ponta Grossa, de cortar o abastecimento de água à noite, para evitar desperdícios. Segundo o jornal, a escassez na zona do Portão, por exemplo, era quase absoluta, “o que jamais se verificou com tamanha gravidade”. Em agosto, o jornal trouxe apelo dos moradores da “Visconde do Rio Branco, parte alta”, que também queriam receber água dos bombeiros.

No “Diário da Tarde”, a falta do “líquido precioso” foi noticiada na edição de 1º de agosto de 1933. Com a “medonha secca”, de acordo com o jornal, imóveis no Centro, nas proximidades do Reservatório do Alto São Francisco, estariam sem água nas torneiras há quatro dias e com os poços secos. No “aristocrático arrebalde do Batel”, a situação também estava complicada. Nos arrebaldes do Portão e Guabirotuba, onde a rede de água encanada ainda não chegava, o abastecimento era feito por caminhões da prefeitura.

Em Santa Felicidade e outras colônias rurais, a produção era prejudicada pela seca. O mesmo ocorria no interior. “A Repartição de Águas e Exgottos tomou uma medida acertada medida de economia”, elogiou a publicação, sobre o corte do abastecimento no período noturno, diariamente, para evitar desperdícios e a “secca absoluta”. Ainda naquele mês, o “Diário da Tarde” destacou a dedicação do Corpo de Bombeiros diante da prolongada estiagem que vinha “martyrisando” o curitibano dos subúrbios.

Em dezembro, “O Dia” voltou a reclamar da estiagem. De acordo com a publicação, os poços da zona do Portão estavam novamente secos e a população, precisando de socorro. No dia 29 de dezembro de 1933, o jornal apresentou nova sugestão ao poder público, para a regulação do abastecimento e a solução parcial do problema: que fosse obrigatório o uso do hidrômetro, inexistente até então na maioria das casas. “Inconscientes deixam torneiras a escorrer dia e noite”, relatou.

“Evite o racionamento”
Na segunda metade do século 20, Curitiba teve as piores secas em 1981, com uma precipitação de 947,4 mm, e em 1985, com 765,5 mm. No primeiro ano, foram registrados 167 dias de chuva, com períodos de estiagem entre fevereiro e setembro. No segundo, foram 154 dias de chuva, com uma precipitação maior em fevereiro e em setembro. Em 2020, entre janeiro e outubro, foram 87 os dias chuvosos.

Em comparação aos períodos anteriores, matérias publicadas na imprensa, disponíveis na Hemeroteca Digital, indicam que parte da população da capital ainda dependia de poços e não tinha acesso à água encanada. Também têm como característica uma preocupação maior com o meio ambiente e o apelo às campanhas educativas pelo consumo consciente. A seca que abateu não só o Paraná, mas a Região Sul do país em 1985, resultou em crises hídrica e energética, devido aos baixos níveis dos reservatórios, com reflexos sentidos ao longo de 1986.

“Curitiba está, devido certamente à estiagem, com cheiro de latrina. Em locais onde a água circula menos o cheiro é insuportável. Tais odores têm provocado crises entre casais de namorados e trocas de olhares acusadores entre amigos. Puxem a descarga, por favor”, ironizou, em 2 de julho de 1981, a coluna “Spray”, de o “Diário do Paraná”. Curitiba estava há 15 dias sem chuva, conforme registros da estação Inmet. Em junho, a precipitação havia sido de apenas 17,2 mm.

Em 5 de agosto, o jornal divulgou comunicado do Corpo de Bombeiros com alerta aos incêndios florestais, principalmente nas áreas rurais. Dois dias depois, o “Diário do Paraná” informou que os focos das queimadas estavam controlados em cidades como Paranavaí e Umuarama, “onde se localizam imensos campos secos”. Na capital, que também sofria com a baixa umidade relativa do ar, afirmou que “combustão espontânea” teria causado as chamas em um depósito de lixo da Cidade Industrial. “A temperatura, segundo a meteorologia, deverá subir ainda mais hoje. A poluição atmosférica em Curitiba parece ter aumentado consideravelmente nos últimos dias.”

Em 11 de agosto, o “Diário da Tarde” registrou a ocorrência, na véspera, de “alguns pingos de chuva”, que serviram “mais para apagar o pó que para reabastecer o volume dos poços da periferia”, acompanhados de muito frio. No dia seguinte, o jornal disse que nova elevação da temperatura fora de época, superando a frente fria, “mostra que a estiagem continua e que as chuvas podem não chegar tão logo por aí”.

No final daquele mês, o “Diário do Paraná” reforçou “o perigo dos incêndios de campo”. A falta de chuva em Curitiba nos últimos 10 dias, relatou, fazia com que o Corpo de Bombeiros começasse a ter dificuldades para dar conta de todas as chamadas. “No último plantão foram atendidos 11 locais, na periferia da cidade, 4 dos quais à tarde.” O apelo era para que a população não ateasse fogo em campos, terrenos baldios ou em lixo. Ainda, que ajudasse no combate a pequenos focos, “mesmo antes da chegada do pessoal do CB”.

No dia 18 de setembro, além da preocupação com as queimadas e que se repetisse a “tragédia de 63”, a capa do jornal destacou: “Começa a economia de água”. Sem previsão de chuvas significativas e com os mananciais em baixa, a matéria alertava que Curitiba teria cortes no abastecimento de água, caso a estiagem durasse mais 30 dias, e reforçava apelo do governo estadual pela economia de água. Em cidades do interior, o rodízio já havia começado. Em folhetos distribuídos à população, foram apresentadas medidas semelhantes às divulgadas até hoje, como fechar a torneira ao fazer a barba, não lavar carros e comunicar eventuais vazamentos à Sanepar.

“No 101º dia de estiagem que assola o Paraná, o Corpo de Bombeiros de Curitiba teve um dia agitado: 6 saídas para combate a queimadas de campo na periferia”, publicou, em 19 de setembro, o “Diário do Paraná”. No final do mês, o “Diário da Tarde” comemorou a ocorrência de dias chuvosos na capital e outras cidades paranaenses, trazendo otimismo à lavoura e àqueles que estavam com os poços secos, temiam o racionamento de água e sofriam com as queimadas.

As matérias sobre a seca de 1985, que além de racionamento de água resultou em crise energética, conforme busca na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, começam em julho. No dia 27, o “Correio de Notícias” afirmou que a estiagem durava dois meses, “transtornando a vida” de 450 mil pessoas sem ligação à rede, que dependiam de poços “secos e contaminados” – 200 mil na capital e 250 mil na região metropolitana. Ainda, que a Prefeitura de Curitiba cogitava a instalação de torneiras públicas em parceria com a Sanepar.

“Sanepar já admite o colapso no sistema de abastecimento de água”, noticiou, em 9 de agosto de 1985, o “Correio”. Devido à vazão dos rios, a estiagem em Curitiba já era considerada pior que a de 1981. “A barragem de Piraquara passa a ser mais exigida”, explicou a reportagem, que previa racionamento na cidade se a ocorrência de chuvas, até a segunda metade de setembro, não repusesse os níveis dos mananciais.

Dias depois, os consumidores curitibanos eram orientados a economizar água. “Água só para 30 dias”, reforçou a capa da publicação, em 21 de agosto. Se o curitibano evitasse o desperdício, o prazo poderia ser ampliado em cerca de 20 dias e a capital não entraria no rodízio – já adotado por Quatro Barras e Piraquara, por exemplo. Para atender hospitais e escolas, os cortes inicialmente atingiriam as áreas residenciais. Com a iminência de escassez, departamentos da Prefeitura de Curitiba adotaram medidas de economia de água, como na irrigação pública, na lavagem de ruas e na arborização.

Em 27 de agosto de 1985, coluna do jornalista Luiz Geraldo Mazza, no “Correio”, informou que a Sanepar estudava lançar “campanha de utilidade pública que preceda o racionamento propriamente dito. Lavar automóvel e regar jardins, permitir vazamentos na rede, nestes dias, são inconcebíveis”. No mesmo dia, o prefeito Maurício Fruet e secretários estaduais discutiram planos de controle do consumo de água e energia elétrica. O “plantão da seca” disponibilizou um telefone para que os moradores da Região Metropolitana de Curitiba afetados pela estiagem pedissem socorro à Defesa Civil.

Em 1º de setembro, a Sanepar a anunciou o começo dos testes operacionais da Represa do Passaúna, cujas obras haviam sido iniciadas quase 2 anos antes, mas paralisadas por falta de recursos do governo federal. No final do ano, devido à crise do abastecimento, começou a operar parcialmente, com um sistema improvisado de captação. A inauguração oficial da primeira fase das obras ocorreu em maio de 1986.

Para a conclusão da barragem, eram necessários recursos da União. No ano anterior, o “Correio de Notícias” chegou a publicar pedido da Sanepar por mais investimentos do governo federal no sistema de captação de água de Curitiba. Caso contrário, dentro de 4 anos a capital entraria em “regime de racionamento parcial e permanente”.

As esperadas chuvas de setembro, cuja precipitação foi de 121,4 mm, já diminuíram no mês seguinte. Em novembro, com rodízio em diversas cidades paranaenses, também a Copel solicitava economia no consumo da energia elétrica. No dia 6 de dezembro, a pedido da empresa e devido ao risco de “colapso energético”, a Prefeitura de Curitiba desligou a iluminação natalina nos diferentes pontos da cidade.

Em 10 de dezembro, com os reservatórios com capacidade para abastecer a capital por mais 20 dias e sem a expectativa de chuvas prolongadas, apenas pancadas de verão, a Sanepar e a Copel fizeram novo apelo ao consumo racionalizado. No caso da água, cada residência deveria fazer uma economia de 40%, usando-a apenas para a alimentação e a higiene. O exemplo adotado pela prefeitura, de desligar a decoração natalina, deveria ser seguido por todos os órgãos públicos, condomínios e comércio.

O temido rodízio na capital foi anunciado no dia seguinte: “Racionamento de água divide Curitiba em três”. A partir da próxima segunda-feira (16), cada setor teria o abastecimento cortado pelo período de 24 horas, a cada 72 horas. O regime emergencial inicialmente vigoraria até 31 de dezembro, mas seguiu, com interrupções conforme as chuvas registradas, até o início de fevereiro de 1986.

Por meio do telefone 199, a Defesa Civil atendia, com carros-pipa, a população sem acesso à rede de abastecimento, cujos poços estavam secos, além de hospitais, escolas e creches. Também recebia denúncias sobre o desperdício d´água. Informalmente, a Copel começou a racionalização de energia em órgãos públicos, com o desligamento dos fusíveis no horário de almoço e após as 18 horas.

“Paraná pode ficar na escuridão”, publicou o “Correio de Notícias”, em 19 de dezembro de 1985, devido à queda na produção de energia ocasionada pela seca persistente. “Abastecimento de água à beira do colapso”, noticiou, no dia seguinte. O rodízio não havia alcançado os resultados esperados e o jornal novamente citava possível decreto de situação de emergência, que permitiria punir o desperdício de água. No início da tarde de 20 de dezembro, cerca de 500 pessoas participaram da “missa da chuva”, pelo fim da estiagem, na Catedral Metropolitana.

Sem afastar a possibilidade de calamidade pública, o prefeito Maurício Fruet decretou o estado de emergência em 24 de dezembro de 1985, quando as chuvas irregulares já duravam oito meses. Dois dias antes, a Copel havia iniciado o corte do fornecimento de energia para a iluminação pública, sem descartar a adoção de medidas para as residências e a indústria. No caso da Sanepar, foi anunciado esquema mais severo de rodízio a partir do dia 28, com cortes no abastecimento pelo período de 48 horas.

O rodízio de 48 horas, relatou o “Correio”, trouxe queixas de moradores das regiões mais afastadas do Centro, como Cajuru, Barreirinha, Bairro Alto e Santa Felicidade, que diziam receber água com pressão insuficiente. “Bairros mais distantes chegam a ficar quatro ou cinco dias sem água”, afirmou o jornal.

Em 6 de janeiro de 1986, o governador José Richa assinou a situação de emergência em Curitiba e mais cinco municípios vizinhos, devido à longa estiagem. O decreto permitiu, até o final de fevereiro, que a Sanepar punisse o desperdício de água, como lavar carros e calçadas, com o “corte na borracha” (lacre no registro). O religamento seria feito num prazo mínimo de 48 horas após o pagamento de multa.

O racionamento energético foi decretado na Região Sul do país em 17 de janeiro de 1986. No Paraná, passou a valer 10 dias depois. O objetivo era equilibrar o deficit que a vazão das usinas hidrelétricas haviam acumulado nos últimos meses, em função da estiagem. O sistema do Sudeste, que vinha comercializando energia e até então garantindo o abastecimento no estado vizinho, estava ameaçado de sobrecarga.

Não foram os tempos da “seca total”, conforme o “Correio” previu, dias antes, sugerindo que haveria rodízio também no abastecimento energético. O cálculo estipulado pela Copel levava em consideração a média de consumo dos três meses anteriores e uma expectativa de economia de 20%, que deveria ser acompanhada pelo medidor. Caso a unidade consumidora ultrapassasse a cota, seria notificada e, se a infração persistisse, aí sim poderia haver a suspensão do fornecimento.

O desfile das escolas de samba no carnaval de Curitiba, em fevereiro de 1986, foi realizado graças à instalação de um gerador na esquina das ruas XV de Novembro e Monsenhor Celso. “Copel mantém punições mas suspende hoje o racionamento de luz”, publicou, em 2 de abril, o “Correio de Notícias”. No final daquele mês, a Prefeitura de Curitiba anunciou já ter religado “14 mil de um total de 35 mil lâmpadas que foram cortadas durante o racionamento”. A meta era religar toda a iluminação pública até o dia 15 de maio.

Após meses de junho e julho de 1986 mais secos, com 26,3 mm e 35 mm de precipitações, respectivamente, a Copel lançou nova campanha para que a população poupasse energia. “Evite o racionamento. A seca está de volta. O nível das nossas represas está baixando rápido. Em consequência, a cada dia diminui nossa capacidade de geração de energia”, pedia o material.

Em abril, mês em que precipitação foi de 78,7 mm, retornaram os rumores de mais um racionamento de água. Como a barragem de Piraquara ainda não havia retomado os níveis pré-estiagem, um curto período sem chuva já preocupava. Em 11 de agosto, entrou em vigor novo decreto de estado de emergência, que tinha como objetivo reduzir o consumo diário de água na capital em 30%. No entanto, após fortes chuvas, o rodízio durou apenas um dia. O ano terminou com uma precipitação 1.364,2 mm – um pouco inferior à média da capital, de 1.452,5 mm, que só seria atingida novamente em 1989.

Século 21
No século atual, Curitiba atravessou outro período de seca em 2006, com uma precipitação de 932,4 mm. Fontão aponta que “a situação pluvial foi relativamente mais confortável” em comparação à enfrentada em 2020, que é de seca extrema. Dentre outros fatores, ele explica que lá para cá a população de Curitiba e região metropolitana, assim como o consumo de água, aumentaram.

O coordenador do Laboclima também pondera que, ao contrário do observado em 2019, o segundo semestre de 2005 registrou um volume considerável de chuvas, de 850,5 mm, mesmo que com uma concentração maior entre agosto e outubro. Já em novembro e dezembro daquele ano choveu 140,4 mm, “bem abaixo do habitual”, o que pode ter contribuído para o deficit hídrico até o final de agosto (auge da estiagem de 2006).

Conforme levantamento realizado para tese de Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento, pela UFPR, a escassez de água foi mote de 63 matérias publicadas no jornal “Gazeta do Povo” no período em que vigorou o rodízio de água em Curitiba em 2006, entre 4 agosto e 17 de setembro. Segundo o pesquisador, Sanderson Alberto Medeiros Leitão, a maior parte das reportagens ouviu fontes oficiais, da Sanepar e outros órgãos, sobre temas como as medidas implementadas, a situação dos reservatórios e a necessidade de se economizar água.

A segunda fonte mais citada foram cidadãos, relatando como estavam se adaptando às restrições no abastecimento. Em terceiro lugar, o estudo identificou como personagens mais comuns especialistas, professores universitários e consultores. A seca foi o principal tema mais abordado pelas matérias, seguida pela gestão dos recursos hídricos e pela educação ambiental.

** Confira aqui as referências bibliográficas da segunda parte da reportagem especial.