Crise hídrica I: afinal, estamos enfrentando a pior seca da história?

por Fernanda Foggiato — publicado 05/11/2020 14h05, última modificação 06/11/2020 10h49
Primeira parte da reportagem do Nossa Memória compara fenômeno atual a outras estiagens registradas em Curitiba.
Crise hídrica I: afinal, estamos enfrentando a pior seca da história?

Índice internacional de monitoramento de secas aponta que a intensidade do fenômeno atual é a maior já registrada. (Montagem: Leticia Bostelmann/CMC)

Em meio à pandemia da Covid-19, com o agravamento da estiagem histórica e a diminuição dos níveis dos mananciais, o Paraná decretou, há seis meses, a situação de emergência hídrica. O decreto 4626/2020, que na semana passada teve a vigência prorrogada até maio de 2021, dentre outras medidas, regulamenta o rodízio do abastecimento, que na capital era adotado desde março, e trata da redução e uso racional da água. A Sanepar trabalha com a META20 – ou seja, que cada um reduza o consumo em 20%.

A primeira parte da reportagem especial do Nossa Memória, espaço da Câmara Municipal de Curitiba (CMC) que desde 2009 se dedica ao resgate da história da cidade, discute a emergência hídrica atual. Para responder a pergunta se esta pode ser considerada a seca mais severa já enfrentada, é feita a comparação a fenômenos registrados desde 1889, quando a primeira estação meteorológica começou a operar na capital.

Se hoje a gestão da crise compreende campanhas pelo consumo consciente e o rodízio no fornecimento de água, por exemplo, a segunda parte da reportagem resgata como o poder público e a população enfrentaram outras estiagens severas. Tal história está atrelada não só às secas, mas às características do sistema de abastecimento ofertado em cada período. Tema da terceira e última parte do especial do Nossa Memória sobre a crise hídrica, ele passa pela dependência de fontes, chafarizes e pipeiros, até o começo do século 20; e tem como um dos marcos a inauguração da rede de água e esgoto encanados, em 1908.

A seca que a capital atravessa começou em julho de 2019, que teve, após um primeiro semestre com chuvas dentro da média, uma precipitação de 12,4 mm. A crise se agravou em março de 2020, mês cujo volume de chuvas foi de 13,8 mm. Entre janeiro e outubro, a precipitação chegou a 798,1 mm. O nível do Sistema de Abastecimento de Água Integrado de Curitiba (SAIC), em 5 de novembro, era de 27,75%. Se cair para 25%, a Sanepar não descarta um rodízio mais rígido, com cortes no fornecimento por 48 horas – ou seja, com 12 horas a mais que o adotado atualmente.

Especialista em secas, o professor Pedro Augusto Breda Fontão, docente do Departamento de Geografia do Setor de Ciências da Terra e coordenador do Laboratório de Climatologia (Laboclima) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), explica que a média anual de chuvas na capital, conforme série histórica do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) registrada entre 1921 e 2019, é de 1.452,5 milímetros. Nesse intervalo, até agora, o ano mais chuvoso foi 1957, com 2.165,2 mm, e o mais seco 1985, com 765,6 mm.

A primeira estação meteorológica da cidade começou a operar em 1889 – posto que atualmente é o seu oficial, vinculado ao Inmet. O período menos chuvoso, no final do século 19, foi verificado entre 1892 e 1897. No século 20, além de 1985, as menores precipitações ocorreram em 1924 (902,4 mm), 1933 (795,2 mm) e 1981 (947,4 mm). Neste século, 2006 registrou um volume de 932,4 mm. Sobre a seca de 2020 ser ou não a pior enfrentada por Curitiba desde que as medições tiveram início, Fontão pondera que é “difícil afirmar, pois ainda estamos passando pelo processo”.


Extremamente seco
Para ilustrar o fenômeno, o coordenador do Laboclima aplicou o Índice de Precipitação Padronizado (SPI – limiar 3), ponto de partida para monitorar secas, endossado pela Organização Meteorológica Mundial. Em um limiar de três meses, a intensidade é a maior já registrada. O valor, abaixo de -3, equivale a extremamente seco. “No entanto, ainda não é a maior em termos de duração”, salienta ele. O cálculo considerou os dados de precipitações ocorridas em Curitiba entre 1921 e 2020, da estação Inmet.

“Podemos dizer que estamos passando no momento por uma seca meteorológica com intensidade superior ou bastante próxima às ocorridas nas décadas de 1980 e de 1930. Porém, em termos de duração e volume de chuva, ainda não podemos afirmar com segurança, pois entre janeiro e setembro de 2020 precipitou 695,7 mm na Estação Inmet, enquanto choveu menos no mesmo período em 1933 [561,5 mm] e em 1985 [576,7 mm]”, completa o professor da UFPR.

O grande diferencial de 2020, para o especialista em secas, pode ser a comparação aos segundos semestres dos anos anteriores, já que o de 2019, com uma precipitação de 456,4 mm, foi bem menos chuvoso que nos outros dois casos, “contribuindo significativamente para o deficit hídrico”. O segundo semestre de 1932 registrou 705,3 mm. O mesmo período de 1984, 713,3 mm.

Fontão também explica que os 695,7 mm de precipitação entre janeiro e setembro de 2020 ficaram abaixo da média para o período, que seria de 1051,9 mm. “Embora em janeiro [207,1 mm], junho [127,3 mm] e agosto [144,1 mm] tenha chovido razoavelmente, as precipitações ocorreram de maneira concentrada, em poucos dias chuvosos. No restante do ano predominaram tipos de tempo mais secos e favoráveis à evaporação e maior consumo de água.”

“O fenômeno das secas é um processo lento e começa a partir de uma seca meteorológica, de precipitações reduzidas em um determinado período. Gera repercussões no campo hidrológico, agrícola e socioeconômico ao longo do tempo, em diferentes intensidades”, esclarece. “Atualmente, em 2020, estamos com um quadro bastante delicado em relação aos reservatórios de abastecimento urbano [nível das represas] de Curitiba. Mesmo com a retomada das chuvas, ainda vai levar um certo tempo para a recuperação dos mananciais.”

Gestão e cenários
“A crise hídrica teve como principal gatilho a seca meteorológica que estamos passando, mas está bastante associada a como é feito o planejamento e a gestão dos recursos hídricos. Não se trata de arrumar ou apontar um culpado em específico, pois o grande problema das secas no Brasil é a falta de uma cultura de gestão de riscos”, analisa Fontão. Ele pondera que “por ser um fenômeno de menor recorrência e que às vezes leva décadas para se repetir, o planejamento para esse tipo de evento extremo acaba não sendo o ideal e, quando aparece, é feita uma gestão de crise episódica, muitas vezes afetando a população mais vulnerável em alguns setores, como agricultura e abastecimento urbano de água”.

Segundo o professor, “havia relatos há cerca de duas décadas sugerindo a construção de novos reservatórios e sistemas de abastecimento, além de aprimorar a eficiência hídrica” da capital. Em 2010, por exemplo, o “Atlas Brasil – Abastecimento Urbano de Água”, da Agência Nacional de Águas (ANA), afirmou que a “garantia da oferta de água” à Região Metropolitana de Curitiba (RMC) dependia “do aproveitamento de novos mananciais para o atendimento das demandas até o ano de 2025. Igualmente, verificam-se restrições nas capacidades nominais de alguns sistemas produtores”.

Quanto ao fim da seca, o coordenador do Laboclima diz que há cenários que sinalizam a ocorrência do fenômeno La Niña no final deste ano, o que agravaria o quadro ainda mais. Já outro modelo (o Seasonal climate forecast from CFSv2 – CPC/NCEP) traz uma previsão mais otimista, com a possibilidade de chuvas próximas do esperado, ou até acima, a partir de dezembro. “Cabe ressaltar que os meses mais chuvosos em Curitiba e região, com base nos dados e registros históricos, são dezembro, janeiro e fevereiro, o que poderia ajudar a aliviar um pouco a situação dos reservatórios de Curitiba e região metropolitana.”

“Todavia isso são apenas estimativas e prognósticos; o momento atual é complicado e há a real necessidade de economizar água, pois se as chuvas não aparecerem em volumes consideráveis até março de 2021, tudo indica que a crise hídrica poderá ser prolongada por tempo indeterminado. No futuro, findada a crise, espero que o quanto antes, o importante é aproveitar ao máximo a experiência e as lições para aprimorar a gestão dos recursos hídricos”, finaliza Fontão.

Em junho passado, a emergência hídrica foi tema da primeira reunião pública virtual da CMC, promovida pela Comissão de Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Assuntos Metropolitanos. Durante o debate, especialistas alertaram ao consumo consciente da água. “Por mais esforço que façamos agora, mesmo com transposições de rios e rodízio no abastecimento, sem uma grande economia não haverá água para Curitiba e região metropolitana nos próximos anos”, declarou o diretor de Meio Ambiente e Ação Social da Sanepar, Julio Gonchorosky.

Além da campanha para a redução no consumo, a Sanepar vem implementando medidas para contornar a crise hídrica, como reativar reservatórios fora de operação a década de 1950, na Serra do Mar. Outra ação foi retirar água da Pedreira Orleans, em Campo Magro, Região Metropolitana de Curitiba (RMC), para abastecer o Rio Passaúna.

Desde agosto, está em funcionamento o Alerta Água, canal para denúncias sobre o uso abusivo de água por meio do aplicativo WhatsApp – basta enviar uma mensagem para o (41) 99521-3022. A Sanepar também pretende concluir, até dezembro de 2020, as obras da Barragem do Miringuava, em São José dos Pinhais, incrementando a capacidade de produção de água.


** Confira aqui as referências bibliográficas da primeira parte da reportagem especial.