Conheça a história dos Planos Diretores de Curitiba - Parte I

por João Cândido Martins — publicado 09/11/2015 07h05, última modificação 03/09/2020 16h35
Conheça a história dos Planos Diretores de Curitiba - Parte I

A praça Osório, em 1905. Intervenções urbanas eram “embellezamentos”. (Foto: acervo Fundação Cultural)

Preocupações com o trânsito, enchentes, mobilidade dos pedestres, ou onde devem funcionar as indústrias e o comércio não são novidades na vida das grandes cidades. Em Curitiba, já no início do século XVIII há registros de ações a serem cumpridas pela população no sentido de se construir uma cidade mais organizada. Erros e acertos marcaram essa história, cujos primórdios mais remotos podem ser encontrados nos provimentos do Ouvidor Pardinho, editados em 1721. Nomes como Pierre Taulois (1855), Ernesto Guaita (1885), Cândido de Abreu (1913-1916) e Saturnino de Brito (anos 20) foram alguns que contribuíram com intervenções no quadro urbano antes que estas propostas ganhassem um caráter mais sistemático, a partir de 1930, quando foi proposto o plano diretor da cidade do Rio de Janeiro, o primeiro do Brasil.

A conclusão, nesta segunda-feira (9), das votações da revisão do Plano Diretor constitui o mais recente capítulo na história do planejamento urbano de Curitiba. Em uma série de quatro reportagens, que serão publicadas nesta semana, o Projeto Nossa Memória investiga como algumas destas inovações ajudaram a projetar a imagem de Curitiba internacionalmente, o que deu errado e o que sequer saiu do papel. O fio condutor serão os planos Agache, Wilheim-IPPUC, e os planos do Ippuc de 2004 e de 2015.

Plano Agache (1943)
Em 1940, por iniciativa do prefeito Rozaldo de Mello Leitão, o município de Curitiba contratou a empresa carioca Coimbra Bueno & Cia Ltda, que era a representante no Brasil do urbanista francês Alfred-Donat Agache (1875/1959), para o desenvolvimento daquele que seria o primeiro Plano Diretor da cidade. Agache, membro da “Société Française des Urbanistes” e criador do termo ”urbanismo”, foi o responsável pela planificação das cidades de Dunquerque (1912), Casablanca (1913), Creil (1925), Poitiers (1926) e também algumas cidades brasileiras, destacando-se o 1º plano diretor do Brasil, implantado no Rio de Janeiro (1930) e, posteriormente, o plano para Porto Alegre (1938).

Para a pesquisadora Janelize Marcelle Diok, “o Plano Agache, como seria batizado em 1943 [já sob a gestão do prefeito Alexandre Beltrão], construiu possíveis soluções acerca daquilo que seriam os três principais problemas da cidade: saneamento, congestionamento e necessidade de órgãos funcionais”.

O saneamento, na visão de Agache, poderia ser resolvido com a drenagem dos banhados e com a construção de duas redes: uma de abastecimento de água e outra para a coleta dos esgotos. Ele também sugeriu a canalização dos rios e ribeirões, principalmente os rios Belém e Ivo, que atravessavam o Centro [em alguns pontos a céu aberto]. Segundo o urbanista francês, estes cursos de água não receberam a devida atenção do poder público, o que resultava nas costumeiras enchentes na região central.

“Todo aquele que se interessar pela urbanização de Curitiba topará, de início, com um sério problema. Refiro-me aos rios que banham a cidade, como o Belém e o Ivo. São cursos d’água muito irregulares e a sua retificação, portanto, redunda num pesado ônus aos cofres do município”, disse Agache em entrevista ao jornal Diário da Tarde de 25 de outubro de 1941.

A proposta de Agache para a solução da questão do congestionamento do centro (entorno da Praça Tiradentes) foi apresentada no Plano de Avenidas da Cidade, aprovado pelo Decreto n.º 23, de 5 de fevereiro de 1942, que dividiu a cidade em quatro avenidas perimetrais (AP-0, AP-1, AP-2 e AP-3), em quatro radiais principais e dez radiais secundárias. O Plano das Avenidas – como previsto por Agache - nunca chegou a ser de todo implantado, mas alguns autores apontam similaridades entre a distribuição circular do transporte coletivo no plano proposto pelo francês em 1943 e o modelo também circular de algumas linhas da Rede Integrada de Transporte nos dias atuais.

Zoning
A setorização do espaço urbano foi outra característica marcante do Plano Agache. O sistema conhecido como “Zoning” propunha a criação de vários “centros”: Centro Cívico (administrativo); Centro Comercial e Social; Centros de Abastecimento (Mercado Municipal); Zona Industrial (Rebouças); Centro Esportivo (Tarumã); Estação Rodoviária; Centro de Instrução (Politécnico) e o Centro Militar (Bacacheri), além de áreas de recreação e lazer.

“O zoneamento é a base de todo o plano de urbanização podendo-se mesmo dizer que sem ele o plano não é urbanismo [...]. O zoneamento é a garantia do proprietário e o incentivo de valorização justa. Simplifica, disciplina e hierarquiza as funções urbanas e reflete o nível de cultura dos seus habitantes”, declara Agache no texto de seu Plano, publicado em 1943. Apesar do valor atribuído pelo urbanista a este aspecto, o Plano de Zoneamento da cidade só foi incorporado às Posturas Municipais dez anos depois.

Essa categorização da cidade decorre da visão modernista/funcionalista proposta em 1928 pelo Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM), que contou com a participação de Alfred Agache. As idéias funcionalistas foram sistematizadas nas Cartas de Atenas (1933), um conjunto de doutrinas sobre planejamento territorial. No entendimento crítico de Jean Louis Harouel, autor de “História do Urbanismo” (1990), citado pela estudiosa Ana Paulo Pupo Correia, o funcionalismo “entende as necessidades humanas como universais, sem considerar os modos de vida, as normas, os valores e os interesses dos diversos grupos sociais. As funções fundamentais do planejamento urbano deveriam se submeter às ordens funcionais: habitar, trabalhar, recrear e circular”.

Das propostas do Plano Agache que chegaram a ser realizadas (e que ainda podem ser vistas), uma das mais marcantes foi o recuo de cinco metros nas entradas dos prédios da rua XV. Tais vãos, sustentados por marquises, criaram galerias monumentais para a passagem dos pedestres. À época que essas mudanças foram incorporadas à paisagem, a rua XV ainda era transitada por automóveis – fato que não impedia um alto fluxo de pedestres nos seus passeios (motivado pela presença das salas de cinema e do comércio).

Abandono do Plano
Julio César Botega do Carmo, autor de uma dissertação de mestrado sobre o planejamento urbano de Curitiba, menciona alguns fatores que contribuíram para que o Plano Agache se mostrasse ineficaz ao longo dos anos que se seguiram à sua apresentação, em 1943. Os dados constam do relatório produzido em 1963 pela Sociedade para Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais (Sagmacs), para um Plano solicitado pelo Governo do Estado. Segundo este relatório, o Plano Agache ficou restrito à área urbana sem considerar adjacências, como por exemplo o Boqueirão (que também seria, alguns anos depois, erroneamente diagnosticado como região de baixa densidade demográfica pelo Plano Wilheim-IPPUC).
 
Além disso, o planejamento sugerido por Agache exigia um controle rígido do crescimento da cidade, conduta que se mostrou impraticável. A população saltou de 120 mil habitantes em 1940 para mais de 600 mil, no início dos anos 70. “O Plano Agache não previa a pressão dessa massa populacional, pois se adotara uma taxa de crescimento demográfico de 2,5% ao ano, enquanto a taxa real foi de 7,4% ao ano entre 1950 e 1960”, diz Luiz Armando Garcez, citado por Botega do Carmo.

As proposições de Agache não encontraram respaldo financeiro. O Estado Novo de Getúlio Vargas não dispendeu recursos e os prefeitos seguintes ignoraram ou descumpriram frontalmente as proposições de Agache. Em seu site pessoal, o engenheiro Lolo Cornelsen aponta algumas distorções sofridas pelo Plano Agache, como por exemplo a utilização do terreno do antigo Corpo de Bombeiros, no cruzamento entre as ruas Cândido Lopes e Doutor Muricy, para a construção da Biblioteca Pública. Esta escolha, associada à construção do vizinho edifício Brazilino de Moura e do edifício do Banco do Brasil, nas proximidades da Praça Tiradentes, impediram o alargamento da rua Cândido Lopes [cuja bifurcação inspirava em Agache a ideia de uma “Times Square” curitibana].

Para Botega do Carmo, em artigo publicado no site Vitruvius, a distribuição espacial urbana de Curitiba projetada por Agache contribuiu para a segregação da população de baixa renda em direção a áreas mais afastadas e nem sempre bem atendidas pelo poder público. Outros pesquisadores compartilham essa visão e ainda acrescentam que Agache minimizou o potencial industrial da cidade. Suas projeções quanto ao espaço físico que deveria ser destinado a essa atividade até os anos 80 se mostraram equivocadas. A Cidade Industrial de Curitiba, quando surgiu em 1973, dispunha de uma área 13 vezes maior do que a proposta por Agache trinta anos antes. 

No início dos anos 60, a cidade (administração e população) percebeu que muitas das aspirações de Agache em relação à Curitiba ficariam no papel. Estudos eram necessários para a aplicação de um novo Plano Diretor, adaptado às transformações sociais vividas pela cidade neste período. Este novo plano, que revolucionaria a história de Curitiba nos anos posteriores, será o tema da segunda parte da história dos Planos Diretores de Curitiba, que será publicada amanhã.

Referências
Carmo, Julio Cesar Botega do. A permanência de estruturas urbanas e a construção do conceito de cidade na abordagem geográfica: Reflexões sobre o planejamento urbano da cidade de Curitiba. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, nível de Mestrado, Setor de Ciências da Terra da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Geografia. Curitiba, 2011.
http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/26438/dis_final_final.pdf?sequence=1


Carmo, Julio Cesar Botega do. Reflexões sobre o planejamento urbano em Curitiba. Vitruvius. Arquitextos, setembro de 2010. Correia, Ana Paula Pupo. História e arquitetura escolar: os prédios escolares públicos de Curitiba (1943-1953). Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em História e Historiografia da Educação. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2004.
http://www.ppge.ufpr.br/teses/M04_correia.pdf

Cornelsen, Lolo. Arquitetura: Plano Agache.
http://www.lolocornelsen.com.br/arquitetura%20-%20agache%20e%20corbusier.htm

Destefani, Cid. Coisas da Rua XV. Coluna Nostalgia. Gazeta do Povo, 11/08/2012. Imagens da Rua XV antes e depois do fechamento
http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/colunistas/nostalgia/coisas-da-rua-xv-23t3ddaljsmjestsm9uualiku

Fernandes, José Carlos. A viagem de monsieur Agache. Jornal de Londrina, 25/09/2011.
http://www.jornaldelondrina.com.br/mundo/conteudo.phtml?id=1172964

GARCEZ. Luiz Armando. Curitiba – Evolução Urbana. Edição do Autor, Curitiba, 2006.

Rodrigues, Janelize Marcelle. Em busca de modernização: o legado do arquiteto Donat Alfred Agache para a cidade de Curitiba. Monografia apresentada como requisito para a obtenção do grau de Bacharel em História pela Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010.
http://www.historia.ufpr.br/monografias/2010/2_sem_2010/janelize_marcelle_diok_rodrigues.pdf

Silva Maclôvia Corrêa da. O plano de urbanização de Curitiba – 1943 a 1963 – e a valorização imobiliária. FAU/USP, 2000. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. Universidade de São Paulo.

Viacava, Vanessa Maria Rodrigues. “Em busca da Curitiba perdida”: a construção do ‘habitus’ curitibano. XII Simpósio Internacional Processo Civilizador – Civilização e Contemporaneidade. Recife, PE. Realizado entre os dias 10 e 13 de novembro de 2009.