Conflitos do transporte III: A alfafa subiu? A tarifa também...

por Fernanda Foggiato — publicado 16/05/2016 10h20, última modificação 03/09/2020 15h56
Conflitos do transporte III: A alfafa subiu? A tarifa também...

Bonde tombado por estudantes na revolta de 1945 contra o aumento da passagem em dez centavos. (Foto: Reprodução/Arquivo Cid Destefani/Coluna Nostalgia/Gazeta do Povo)

O preço da passagem de bonde de primeira classe, em que as pessoas só podiam "viajar calçadas", começou, em 1887, em 200 réis até o Batel e em 100 réis nas outras linhas. Nos vagões mistos, em que os passageiros dividiam espaços com as cargas, o “coupon” custava 100 réis. Mas logo surgiram reajustes e questionamentos, que confrontavam os valores devido à qualidade do serviço ofertado.

A Ferro Carril publicou na imprensa, em 30 de setembro de 1896, um aviso de reajuste da passagem, que a partir de 1º de outubro seria de 200 réis nas linhas Batel e Aquidaban. “Este augmento é rigorosamente motivado pela actual crise que passa o commercio. […] A alfafa e outras forragens, artigos necessarios para os animaes dos serviços das linhas dos bonds, têm acompanhado essa elevação”, justificou. Em julho de 1898, a Câmara divulgou a aprovação do reajuste das tarifas, que passaria a vigorar no dia seguinte. Todas as linhas diretas, por exemplo, foram fixadas em 200 réis.

Em junho de 1900, o jornal “A Republica” publicou um artigo sobre a tarifa dos bondes, em que criticava o contrato entre a empresa Ferro Carril Curitybana e a Câmara Municipal, acusada de tratar as deficiências do sistema com clemência, em prejuízo da população. “Verificamos que pelo primeiro additamento feito ao primeiro contrato, é a companhia obrigada a fazer o calçamento entre os trilhos e mais 0,30 a margem. No emtanto, quem percorrer as linhas do Batel e Aquidaban se certificará inteiramente do contrario”, alertou.

O artigo também apontou irregularidades nos horários e falta de asseio nos bondes, dentre outras questões, normatizadas tanto pelo contrato quanto por um regulamento aprovado pela Câmara em 1897. A Ferro Carril Curitybana, continuou “A Republica”, tentava aprovar uma nova tarifa para o trecho entre o Teatro Hauer e o Quartel do Regimento de Segurança. “Até o quartel, este preço não poderá exceder os 100 reis a partir do theatro Hauer, ou 200 reis a partir do Matadouro”, opinou.

A publicação também contestava declarações dos gestores da empresa de bondes, de que as linhas Aquidaban, Fontana e Matadouro eram mantidas por patriotismo: “É puro gracejo. […] O publico não tem obrigação de sacrificar o ser dinheiro e portanto suas economias para enriquecer uma empreza”.    

Revolta de 1945
Saindo dos tempos dos “coupons” cobrados em réis para a tarifa em cruzeiro e da gestão do transporte pela Ferro Carril para a administração do sistema, já elétrico, pela Companhia Força e Luz do Paraná (CFLP), Curitiba teve, em 1945 - no pós-guerra - uma revolta estudantil devido ao anúncio de reajuste da tarifa em 10 centavos. Segundo o jornalista Cid Destefani, em matéria do jornal “Gazeta do Povo”, na coluna “Nostalgia”, o comunicado foi publicado em 31 de maio e o aumento já valeria, tanto para os bondes quanto para os ônibus, no dia seguinte.  

“Foi o estopim com retardo para o que iria acontecer no dia 3 de junho, quando à noite, por volta das 21 horas, começaram os protestos dos estudantes universitários que em número aproximado de uma centena fizeram uma viagem de bonde da praça Zacarias ao Seminário, retornando ao ponto de partida, onde retiveram o veículo até as 23 horas. À frente da multidão os diretores da União Paranaense dos Estudantes [UPE], cujo presidente Francisco Oswaldo Costelucci falou às pessoas ali reunidas, atacando os lucros das passagens e os altos lucros auferidos pela CFLP. O manifesto foi pacífico, contando com a presença de policiais”, escreveu o jornalista, em 1993.

No dia 5, disse a coluna, “as manifestações começaram a tomar o rumo da violência, apesar do manifesto publicado pelo Sindicato dos Trabalhadores da Empresa de Carris de Curitiba, apelando ao povo que apoiasse o aumento que iria trazer melhorias aos trabalhadores e que a situação dos salários, como estava, era insustentável”. Os estudantes, contou Destefani, lotavam os bondes e se negavam a pagar as passagens.

“No dia 6, pela manhã, foi tombado um bonde da linha Juvevê, na avenida João Gualberto. […] Em resposta às reivindicações estudantis, o governo mandou, à noite, piquetes de cavalaria da Força Policial para a frente dos colégios Iguaçu e Novo Ateneu, quando os milicianos deram cargas com suas espadas desembainhadas contra os estudantes que saíam das provas parciais de meio de ano. Vários foram feridos, tendo inclusive cavalarianos tentado adentrar com suas montarias no Colégio Iguaçu. Foi uma verdadeira operação 'matar no ninho', para impedir que os colegiais voltassem a atacar os coletivos. Motivados por esta agressão, os estudantes criariam poucos dias depois a União Paranaense dos Estudantes Secundaristas”, relatou.

Ainda de acordo com a pesquisa de Destefani, os protestos seguiram até o dia 15 de junho e foram apoiados por operários e professores. “As manifestações de junho de 1945 só terminaram quando Manoel Ribas voltou da viagem que fizera ao Rio de Janeiro, reassumindo a Interventoria do Paraná”, finalizou.

“Cheio como um ovo”
Atraso, lotação, sujeira e goteiras eram algumas das críticas à conservação dos bondes. “Vê-se o maior descuido, nota-se que nem o espanador, nem um panno molhado, tiveram a dita de andar por ali. […] Nos bancos, em logar de verniz, ostentava-se uma bella camada de pó”, assinou Zé das Dornas, em artigo publicado no jornal “A Republica”, em maio de 1890.

No mesmo jornal, em junho de 1894, questionava-se como era possível andar de bonde em dias chuvosos: “Espera-se um bond duzentos e tantos minutos! [...] São mesmo uma casa velha toda cheia de gotteiras”. Em maio de 1896, um cidadão, cansado do “bond cheio como um ovo”, cobrava um código para regulamentar as viagens. Esse documento, dizia, teria que determinar o limite de quatro pessoas por banco, vedar a prática de escarrar nos vagões e afixar a pessoas “com mais de 60 centímetros de base” o pagamento da passagem em dobro.

Se as condições dos bondes chamavam a atenção, a dos burros que os puxaram até 1913 também era lamentada, com denúncias de maus-tratos aos animais. “Ah! Quanto horror! O pobre do burro estava magro e já não podia mais. Apanhou tanto, que cheguei a contar-lhe cinco mil quinhentas e dezoito bordoadas! […] Sociedade Protetora dos Animaes, onde estais tu?”, escreveu João de Tapitanga, em junho de 1894, no “A Republica”.

“Velhos, vagarosos, mal lavados e mal cheirosos, mas sempre super lotados, os poucos bondes que servem o curitibano nos dias que passam se constituem num martírio indispensável”, definiu a “Gazeta do Povo” em 1952, ano que os bondes elétricos, já raros, deixaram de circular em Curitiba. A última viagem seguiu do Centro ao Portão, em julho daquele ano. O transporte coletivo da cidade, desde então, gira em torno dos ônibus.

Leia também:

Conflitos do transporte: “fura-catracas” de hoje são “pula-bondes” de ontem

Conflitos do transporte II: a pau e pedras, a revolta dos carroceiros

Antes dos primeiros “omnibus”, os bondes puxados por mulas

A história da Garagem de Bondes de Curitiba


Confira mais reportagens históricas sobre Curitiba na seção “Nossa Memória”.


Nota: As citações de atas e notícias, entre aspas, são reproduções fiéis dos documentos pesquisados. Por isso, a grafia original não foi modificada.


Referências Bibliográficas - “Conflitos do transporte III: A alfafa subiu? A tarifa também...”

01| Jornal A República. Curitiba, PR. 10/05/1890. Acesso em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=215554&PagFis=801

02| Jornal A República. Curitiba, PR. 03/06/1894. Acesso em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=215554&PagFis=4051

03| Jornal A República. Curitiba, PR. 19/06/1894. Acesso em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=215554&PagFis=4091

04| Jornal A República. Curitiba, PR. 24/05/1896. Acesso em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=215554&PagFis=6428

05| Jornal A República. Curitiba, PR. 30/09/1896. Acesso em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=215554&PagFis=6820

06| Jornal A Republica. Curitiba, PR. 23/07/1898. Acesso em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=215554&PagFis=8826

07| Jornal A Republica. Curitiba, PR. 10/06/1900. Acesso em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=215554&PagFis=11010

08| Jornal Gazeta do Povo. Coluna Nostalgia. Curitiba, PR. 06/06/1993. Disponível no blog Curitiba Naqueles Idos. Acesso em:
http://curitibanaquelesidos.blogspot.com.br/2015/01/revolta-estudantil-junho-de-1945-causa.html

09| Jornal Gazeta do Povo. Curitiba, PR. 19/04/2013. Acesso em:
http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/o-ultimo-bonde-0dt8puhkvoogsxlv8yquh8b4e

10| Jornal Gazeta Paranaense. Curitiba, PR. 10/11/1887. Acesso em:
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=242896&PagFis=2031