Conflitos do transporte: “fura-catracas” de hoje são “pula-bondes” de ontem
Montagens de reportagens de jornais, na primeira metade do século 20, de acidentes com “pingentes”. (Montagem: Aline Bonn)
Se hoje a discussão é sobre o direito ao transporte público e os prejuízos ocasionados pelos “fura-catracas”, Curitiba combatia, no final do século 19 e no começo do século 20, os “pula-bondes”, chamados de “pingentes”. Enquanto em 2016 temos registros de confrontos entre os taxistas e os “uberistas”, em 1887, com a chegada do bonde de tração animal à cidade, o impasse foi com os carroceiros, que se revoltaram com a concorrência e boicotavam o novo sistema.
Se atualmente o diesel impacta a tarifa dos ônibus, o problema indicado em 1896 para o reajuste dos “coupons” foi o aumento do preço da alfafa, usada para alimentar os animais. Aumento do preço da passagem, lotação, acidentes, condições de trabalho... esses são só alguns dos conflitos do transporte da capital paranaense, que ocorrem há quase 130 anos.
Mesmo com atraso, uma vez que os bondes de tração animal já circulavam na capital do Império, o Rio de Janeiro, desde 1859, o embrião do transporte coletivo de Curitiba foi aclamado pela população. A cidade fez festa para a partida da linha inaugural, que seguia da estação ferroviária para o Batel. Para a comitiva de vereadores que representou a Câmara Municipal na solenidade, o sistema trazia progresso e civilização, conforme discurso publicado no jornal “Gazeta Paranaense” em 11 de novembro de 1887, três dias após a primeira viagem da empresa Ferro Carril Curitybana. A lua de mel na imprensa, no entanto, pouco durou.
O primeiro registro de acidente do modal é de 27 de dezembro daquele ano. Em um domingo de manhã, segundo a “Gazeta Paranaense”, o bonde nº 3 descia a rua da Assembleia (atual alameda Doutor Muricy) “com tanta velocidade que não obedeceu a curva”. Então descarrilou e tombou na entrada da rua da Imperatriz (nome que recebia a XV de Novembro). O jornal culpou o “pouco cuidado” do cocheiro – como eram chamados os motoristas até a chegada do bonde elétrico, em 1913, quando a função passou a ser de motorneiro. Os cobradores, por sua vez, eram os condutores.
A publicação noticiou, em 31 de dezembro, outro acidente, ocorrido um dia antes, desta vez com o bonde nº 4. O veículo teria se chocado e destruído a “carrocinha de conduzir lenha” da “allemã Paulina, colona pobre que começa sua vida”. De acordo com a “Gazeta”, testemunhas informaram que o cocheiro “muito de propósito fez esse mal”. Na edição seguinte, a empresa Curitybana rebateu as acusações: “Que lembre a inconveniencia q'existe em uso nesta provincia de serem entregues o governo de animaes em carroças e mesmo carros a mulheres”. Se a imprensa noticiava choques entre bondes, automóveis e carroças, outra preocupação, agravada com o sistema elétrico, mais veloz e perigoso, eram os “pingentes”. Geralmente homens, eles literalmente "pegavam o bonde andando".
“Pingentes” e “balangandãs”
Os bondes de mulas eram abertos, com a armação de madeira e estribos – degraus para facilitar a subida. Apesar de proibida, a viagem nessas pequenas plataformas era comum e ocasionava acidentes. Os passageiros, que desafiavam a regra de segurança para não pagar a passagem, devido à lotação dos carris, como símbolo de masculinidade ou por brincadeira de criança, foram apelidados de “pingentes”, enquanto os veículos eram chamados de “balangandãs”. Outra transgressão era a prática de descer ou subir no vagão em movimento, o que também era conhecido como “morcegar o bonde” ou “tomá-lo de assalto”.
Segundo pesquisa do Departamento de Patrimônio Histórico da Eletropaulo sobre os acidentes de bondes em São Paulo de 1900 a 1905, o principal motivo das quedas de passageiros era a descida com o veículo em movimento (39,14%), seguido dos “pingentes” (30,40%) e por “pegar o bonde andando” (17,40%).
“Às 8 horas da noite de antehontem, no Portão, foi victima de sua imprudencia o ebrio Lucio Ferreira, ao tentar embarcar no bond que àquella hora passava por ali, cahindo por terra, quebrando seu braço e ferindo-se gravemente na costella esquerda”, publicou “A Republica”, no dia 23 de setembro de 1913. O cidadão, disse o jornal, foi “removido para a cidade [Centro] no carro da Assistencia Medica” para a Santa Casa de Misericórdia.
“Homem esmagado” é o título de uma nota do mesmo jornal, de 10 de janeiro de 1915. Segundo a publicação, Manoel Francisco da Silva caiu “desastradamente de um bond, na rua Comendador Araujo” e foi conduzido por um guarda civil ao delegado, que o encaminhou à Santa Casa, “onde falleceu”. O “Correio do Paraná”, em 28 de julho de 1938, nomeou a notícia de “O barato sae caro...”. Era sobre um jovem de 15 anos que viajava como “pingente” e bateu contra um poste na rua 24 de Maio, próximo à avenida Iguaçu, sofrendo diversas escoriações.
Em outubro de 1905, “A Republica” registrou o acidente com Orestes Barbosa, condutor da linha Seminário que estava no estribo: “O bonde corria em grande velocidade e descia a rampa ali existente. […] O infeliz conductor foi de encontro com o poste de ferro, ficando preso entre este e o bond e cahindo depois no açude marginal à estrada, d'onde o levantaram sem sentidos, com o rosto horrivelmente ferido e o corpo cheio de contusões”. Também acabou em um poste a viagem de um “jovem pingente”, em novembro de 1935, na esquina da Comendador Araújo com a Desembargador Motta. Levemente ferido, foi medicado e teve alta.
Anos antes, em outubro de 1931, “o menor Osny Tavares”, que segundo o “Correio do Paraná” viajava dependurado na traseira de um bonde da linha Batel, por “travessura”, não teve a mesma sorte. Lançado de cabeça contra um poste, na rua Ângelo Sampaio, chegou a ser encaminhado ao Instituto de Medicina e Cirurgia, onde foi atendido pelo doutor Erasto Gaertner, mas não resistiu à “commoção cerebral” e faleceu. Para o jornal, era “indispensavel que a policia prenda e recolha os menores ao Abrigo”.
A cobrança não parou por aí. Semanas depois, o jornal publicou o artigo “Onde esta' a policia?”, cobrando providências das autoridades “no sentido de salvaguardar a vida desses peraltas, inconscientes aos perigos que os ameaçam naquellas viagens como pingentes”. “Os motorneiros [motoristas] não podem evitar os desastres, pois os menores se seguram no para-choque trazeiro do carro. De agora em deante, qualquer desastre que infelizmente se verifique culparemos a policia como unica responsavel.”
Em 1895, a imprensa já cobrava ações que impedissem o tráfego de bondes superlotados e as viagens nos degraus dos carris. No Rio, afirmou “A Republica”, havia sido inventado o estribo automático, para resolver o problema. O equipamento, relatava o jornal, ficava na horizontal apenas quando o vagão estava parado. Ao se mover, o estribo subia, impossibilitando a prática do “morcegar”. “E quando completa a lotação algum passageiro que, se aproveitando de uma parada, queira conservar-se no estribo, importa isto impedindo o movimento do carro, o que de certo não se sujeitarão os passageiros, que afinal tambem se constituirão em fiscaes na execução da lei.”
Outras transgressões
Além dos “pingentes”, os condutores e os cocheiros - que conforme artigo do jornal “A Republica”, de 1899, trabalhavam 18 horas seguidas, ganhavam pouco e eram multados pela “mais ligeira falta” -, enfrentavam outros problemas. Na hora de cobrar a passagem, quando o bonde estava lotado, por exemplo, passageiros alegavam já ter efetuado o pagamento.
Há registros, ainda, de dinheiro falso. Um desses casos, citou “A Republica”, em 9 de janeiro de 1915, foi de um homem que tentou pagá-la com uma nota ilegítima de 5 mil réis, no bonde da linha Batel. Apresentado por um guarda civil ao delegado, ele argumentou que recebeu a cédula no cinema, sem saber da irregularidade, e foi liberado.
Em 1894, o gerente da Ferro Carril Curitybana, em prestação de contas publicada no jornal “A Republica”, lamentou um episódio envolvendo um oficial e sua escolta, que pararam um bonde, atrasaram a viagem e depois, ao serem cobrados pelo condutor, se recusaram a pagar a passagem. Na época, apenas as “crianças de peito” eram isentas da tarifa.
Em um “omnibus”, em 1936, quando eles circulavam pela cidade junto aos bondes, o condutor José Vasco Macanhã foi gravemente ferido na cabeça por três cidadãos que se recusavam a pagar a passagem. A “trinca”, então, aproveitou o cidadão caído no chão, “banhado em sangue”, e “evaporou-se”, relatou “O Estado”.
Leia também:
Conflitos do transporte II: a pau e pedras, a revolta dos carroceiros
Conflitos do transporte III: A alfafa subiu? A tarifa também...
Antes dos primeiros “omnibus”, os bondes puxados por mulas
A história da Garagem de Bondes de Curitiba
Confira mais reportagens históricas sobre Curitiba na seção “Nossa Memória”.
Nota: As citações de atas e notícias, entre aspas, são reproduções fiéis dos documentos pesquisados. Por isso, a grafia original não foi modificada.
Referências bibliográficas - “Conflitos do transporte: “fura-catracas” de hoje são “pula-bondes” de ontem”
Câmara Municipal de Curitiba. Antes dos primeiros “omnibus”, os bondes puxados por mulas. Setembro de 2012.
Câmara Municipal de Curitiba. A história da Garagem de Bondes de Curitiba. Abril de 2013.
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Vicentini, Willian Roberto.A MODERNIDADE EM MOVIMENTO: o processo de mudança dos bondes na Curitiba fin de siècle. Curitiba, PR. 2015.
Reprodução do texto autorizada mediante citação da Câmara Municipal de Curitiba