Com Samuka MC e Lua D’Avila, Câmara exalta os 50 anos do hip-hop

por João Cândido Martins | Revisão: Alex Gruba — publicado 06/09/2023 17h50, última modificação 06/09/2023 17h52
Os 50 anos do movimento hip-hop em Curitiba foram o tema da Tribuna Livre, com vereadores manifestando desagravo em relação a ofensas contra o movimento.
Com Samuka MC e Lua D’Avila, Câmara exalta os 50 anos do hip-hop

Por iniciativa da vereadora Giorgia Prates – Mandata Preta, os 50 anos do movimento hip-hop em Curitiba foram homenageados na Câmara. (Foto: Rodrigo Fonseca/CMC)

Durante a Tribuna Livre desta quarta-feira (6), a Câmara Municipal de Curitiba recebeu Samuel Costa, o Samuka MC, presidente da Associação dos Rimadores e membro do Conselho Municipal de Política Étnico-Racial de Curitiba (Comper) e a rapper Lua D’Avila, integrante do grupo J.A.C., poeta que tem se destacado no atual cenário musical da capital paranaense. Eles discorreram sobre o tema: “50 anos do movimento hip-hop no Brasil”. A Tribuna Livre foi presidida pelo vereador Tito Zeglin (PDT), presidente da Câmara Municipal de Curitiba e teve a iniciativa da vereadora Giorgia Prates – Mandata Preta (PT).

A Tribuna Livre é um espaço dentro da sessão plenária das quartas-feiras, para que convidados dos vereadores se pronunciem sobre temas de interesse da coletividade.

Assista à Tribuna Livre no canal da Câmara no YouTube.

Saudação

Giorgia Prates – Mandata Preta iniciou sua fala lembrando que o movimento hip-hop nasceu nas ruas do Bronx, em Nova Iorque. “Surge como uma voz das comunidades marginalizadas e logo se espalha pelo mundo. Em Curitiba, uma cidade que se forja como branca e europeia, o hip-hop se tornou um símbolo de existência e de resistência da comunidade negra e das periferias”, afirmou a vereadora. Para ela, falar do hip-hop na Câmara é fundamental, haja vista que há algum tempo houve divergências em torno da própria existência do movimento. “É muito importante a gente ter conhecimento, saber do que está falando e nada melhor que dar voz às pessoas que ocupam esses espaços. Aprender com eles para que a gente não cometa mais erros e tenha que conviver com falas racistas”, disse Giorgia.

Ela explicou que, em razão da importância do hip-hop para a comunidade Negra, convidou Samuka MC, poeta, músico, rapper e ativista negro. Samuka o Comper e representa o movimento negro de Curitiba, além de presidir a Associação de Rimadores, entidade que, desde a sua fundação, em 2018, promove ações de assistência social em comunidades carentes. Samuka MC combate o feminicídio, o racismo e o uso de drogas em suas palestras nas escolas. Outra presença trazida por Giorgia Prates foi a rapper Lua D’Avila. De acordo com a vereadora, Lua é uma voz poderosa que aborda questões complexas como a maternidade-solo, a mulher preta e o racismo estrutural em suas composições. Lua também faz parte do grupo J.A.C., ao lado do Mano Cappu, sendo ambos destaques no atual cenário musical da cidade.

Hip-hop

Samuka MC declarou que veio à Câmara para falar do hip-hop. “Um movimento que foi atacado dentro dessa Casa. Usaram os próprios versos do hip-hop para atacar o movimento”, afirmou ele. Samuca lembrou que esteve na Câmara há alguns anos, quando a Associação dos Rimadores passou a ser reconhecida com o título de Utilidade Pública, por iniciativa do vereador Jornalista Márcio Barros (PSD) (lei municipal 15.878/2021). “Sempre nos dispusemos a trabalhar em parceria com a Prefeitura e, mesmo assim, fomos atacados. E com a utilização de versos que quem conhece sabe que se referem às drogas e à violência, pois esta é a realidade das comunidades”, disse o músico. Ele disse vir com orgulho à Câmara representando a comunidade negra, que é formada por homens, mulheres, pais e mães.

“Tenho 43 anos e ninguém tá aqui de brincadeira”, afirmou Samuka MC, lembrando de um verso do rapper Black Alien: “Não vou queimar a casa, para me livrar do rato”. Ele informou que buscou contato com o agente Celso, da Guarda Municipal, sob indicação do vereador Márcio Barros, mas não obteve retorno. “Quando o René Randal foi atacado numa praça de forma hostil pela polícia, eu me questionei: que cultura é essa que ofende tanto e faz com que a polícia atue contra a gente?”, indagou Samuka. Ele comentou que também representa o Movimento Black Panther, desejando a paz. “Os Panteras Negras têm um lema segundo o qual, ‘a violência, só se for preciso’. Não quero trazer a violência. Prego o amor e prego a paz nas minhas letras”, declarou o rapper. Em seguida, Samuka pediu para que a equipe técnica da Câmara exibisse um vídeo em que uma menina conta como o hip-hop a ensinou a superar os preconceitos raciais que enfrentava.

Samuka reforçou a relevância do rap e de rappers curitibanos como Marinho, Randal e o pessoal do grafite. “Se não fosse por eles, a violência seria bem maior na cidade. O hip-hop afasta as crianças da ‘biqueira’ (ponto de tráfico) e eleva a autoestima dos marginalizados. Citei esses rappers porque são os que estão comigo, mas há muito mais gente por aí que faz isso acontecer. Então, hoje, estou aqui pra reconstruir o que tentaram destruir nessa Casa”, disse o presidente da Associação dos Rimadores. Samuka comentou que quando veio à tona a fala anti-hip-hop manifestada na CMC, orientou seus amigos e seguidores do movimento a não repostar o comentário pejorativo. “Disse pra todos não respostarem, pra não dar importância a essa pessoa que deseja se projetar usando nosso movimento. E só pra lembrar, no momento, o hip-hop é a música mais ouvida no mundo. Não tem samba em todos os países, mas tem hip-hop em todos os países”, afirmou o rapper. Ele destacou que Curitiba foi construída por negros num estilo europeu.

Samuka mostrou imagens de atividades promovidas pela Associação de Rimadores em escolas, na batalha de rappers que era promovida no Parque Bacacheri (evento que também sofreu hostilidades), o Natal Solidário, mutirões do bem, trabalho artístico desenvolvido como estímulo do empoderamento feminino na “Escada do Sucesso”, divulgação da arte do grafite (graffiti), palestra sobre políticas públicas a respeito de drogas, feminicídio e outros temas que atingem as comunidades. Ele também enfatizou a divulgação nas escolas da pessoa e dos atos do líder negro Martin Luther King e lembrou da participação no livro Narrativas Afro-Curitibanas, publicação de iniciativa da Assessoria de Promoção da Igualdade Étnico-Racial, órgão ligado à Prefeitura.

Samuka ainda falou sobre a festa dos 50 anos do hip-hop realizada no saguão do edifício Itália, espaço em que dançarinos de break e hip-hop realizam performances desde a inauguração do prédio, nos anos 1980. “Outra atividade que merece destaque é o Slam da Zumbi, evento no qual se promove a educação antirracista em disputas de poesia falada. O evento é promovido em parceria com o Instituto Afro Brasil do Paraná e tem apoio da Prefeitura de Curitiba”, disse.

Samuka reiterou que só um vereador incomodou com sua fala. Ele ressaltou que sabe o respeito que os demais vereadores têm em relação à comunidade negra e ao movimento hip-hop. “Foi uma fala que atingiu diretamente minha pessoa, mas eu não sou violento. A Associação dos Rimadores, que eu represento, está crescendo, o movimento negro é muito grande. Vocês já viram aquilo que eu posso fazer pelas comunidades e, daqui em diante, eu vou ver o que vocês podem fazer por mim, não pela minha pessoa, mas pelo movimento hip-hop e pela cidade de Curitiba”.

Grito

“A população periférica existe porque foi colocada à míngua após a Abolição da Escravatura e ficou à margem das oportunidades e dos serviços, que só eram ofertados nos centros. Depois, fomos linchados. Enquanto imigrantes vinham com direito a terras e toda forma de apoio, nós já estávamos nas periferias. E isso se perpetua”, afirmou a rapper Lua D’Avila. Ela disse que somente agora resolveu cantar e compor. “Na letra do rap 'Grito', que escrevi em parceria com o Cappu, e que fala do racismo estrutural, pude por pra fora um pouco do que eu vivi desde os 4 anos de idade”.

Para Lua, quem buscar informações sobre o hip-hop no Google vai encontrar, entre os primeiros links, uma parte significativa de notícias envolvendo o movimento e a violência. Sites que tratam da importância cultural e social do hip-hop só aparecem mais abaixo. “As informações estão lá para quem quiser saber”, frisou. Lua D’Avila disse que a população branca sempre deteve poder sobre a informação e sua propagação. “A gente também transmite e consome, daí a importância do lugar de fala. A população branca não sabe o que é ser perseguido por seguranças em um mercado. Quem sabe falar sobre nossas questões e nossa história somos nós. Por que não há um assessor preto em todos os gabinetes?” indagou.

Veja as fotos da Tribuna Livre clicando na imagem abaixo:

06/09/2023 -Tribuna Livre - 50 anos do movimento hip-hop no Brasil

Perguntas

Giorgia Prates – Mandata Preta (PT) ressaltou a necessidade de se falar sobre a essência do hip-hop e do porquê ele ser tão necessário e urgente para as periferias. “Existe o poder público, a polícia, mas nas periferias muitas vezes somos nós por nós mesmos”, afirmou a parlamentar. Para ela, o movimento precisa ser respeitado, para não ocorrer marginalização dos artistas. Para Giorgia, essa Tribuna Livre foi importante na medida em que falas contrárias ao movimento hip-hop, que ela entende como de teor racista, foram proferidas na Câmara e, ainda segiundo ela, não teria havido nenhuma reação por parte da Casa.

“Temos de reconhecer que as coisas que acontecem aqui refletem lá fora, e a Casa precisa se posicionar quando se trata de falas racistas”, defendeu a vereadora, que é presidente da Comissão de Direitos Humanos da CMC. Ela concluiu mencionando o processo de aquilombamento das periferias. “Devemos refletir sobre como esse processo faz diferença não só na hora de salvar vidas, mas também no sentido de quebrar paradigmas”, finalizou.

Rodrigo Reis (União) disse que a vinda de Samuka e outros representantes do hip-hop à Câmara era importante. De acordo com ele, houve um ataque por parte de um único vereador em um universo de 38 parlamentares. “Eu mesmo, naquele dia, fiz uma saudação ao hip-hop, até porque sou fã do estilo. Aprecio o break também e outras manifestações culturais que fazem parte da periferia. Todos nós, vereadores, tivemos votos que vieram das pessoas das periferias. Eu venho do movimento conservador de direita, mas tenho o maior respeito. Digo que aqui vocês têm a paz”, afirmou o vereador. Em resposta, Samuka MC disse entender que a questão vai além de divisões ideológicas de direita e esquerda. “Nós, do hip-hop, não somos direita nem esquerda. Somos pra frente. Quem me apresentou ao Márcio Barros foi o delegado Rubens Recalcatti, então por aí se vê que o movimento hip-hop trabalha pelo que é certo e tem força pra convencer um delegado de polícia a fazer essa ponte”, afirmou.

Fundação Cultural

Maria Letícia (PV) deu boas-vindas aos representantes do hip-hop e esclareceu que a votação na qual houve o ataque não foi uma unanimidade, sendo que muitos vereadores se posicionaram favoravelmente ao movimento. Ela perguntou aos rappers em que medida seria benéfico ao movimento hip-hop tornar-se patrimônio imaterial da cultura brasileira e também indagou sobre como a Fundação Cultural de Curitiba (FCC) tem se posicionado no que diz respeito a recursos para fomentar a divulgação do hip-hop. Especificamente à rapper Lua, a vereadora perguntou como se dava a questão de gênero dentro do movimento.

Lua D’Avila declarou que a FCC lança poucos editais voltados ao povo negro. Ela também apontou que a maioria dos editais que envolvem o hip-hop não têm cachê. “Ninguém trabalha de graça. A gente não trabalha de graça. Por que, então, não tem cachê? As pessoas não têm boca pra alimentar? Nenhuma das artes que a gente está enaltecendo é feita de graça”, disse. Ela comentou que seu TCC teve como título, “O Não-Lugar da Mulher Preta na Publicidade Curitibana”. Durante a pesquisa, constatou que os únicos trabalhos ofertados na área de publicidade para pessoas negras vinham do governo. Sobre a questão do gênero, a única campanha que ela disse ter visto foi uma realizada pelo Detran, que teve a participação da artista Karol Conká. Ela destacou também outras cantoras do hip-hop, como Janine Mathias e Tássia Reis – de acordo com ela, essas cantoras representam apenas a ponta de um iceberg.

Professora Josete (PT) parabenizou Giorgia pela iniciativa e saudou os convidados. “Nós acompanhamos alguns grupos, temos pessoas próximas ligadas ao movimento e sempre entendemos o hip-hop como uma expressão cultural, como a voz daqueles que representam as periferias”. Para a vereadora, essa cultura se ampliou com a participação de muitas pessoas. Ela entende que o hip-hop representa um trabalho fundamental com base na cultura da paz. “Garantir a conscientização, inserir as crianças e jovens na sociedade de uma forma positiva e levar uma discussão que garanta a descriminalização do hip-hop”. Sidnei Toaldo (Patriota) também reconheceu o valor do movimento hip-hop e disse que, da sua parte, há o maior respeito por essa manifestação cultural. “Tenho filhas que apreciam o estilo e eu mesmo já ouvi. Mas o que me chamou muito a atenção foram as ações sociais desenvolvidas pelo movimento”, destacou o parlamentar.

Visibilidade

O vereador Jornalista Márcio Barros (PSD), declarou que também é músico e que, entre suas influências, estão nomes importantes da música negra, como Otis Redding e B.B. King. Ele enfatizou a importância das ações sociais desenvolvidas pelo movimento hip-hop e disse que também ficou ofendido com as declarações contrárias ao movimento emitidas na Câmara. “Não podemos generalizar, temos vereadores com opiniões e posicionamentos os mais diversos, mas, neste caso, a grande maioria vê o movimento com o respeito que ele merece”, disse o vereador. Para ele, o estado deve incentivar e criar o ambiente propício para que o mercado musical referente ao hip-hop se aqueça.

Em resposta, Lua comentou que não se trata apenas de uma questão de mercado e de consumo da música, mas também de oportunidade, acesso e visibilidade: “Se a gente não é educado a se aceitar e se amar, a respeitar a ancestralidade da nossa própria cultura, a gente não vai dar valor para isso”. Ela reforçou que os negros foram trazidos ao Brasil na condição de escravizados e foram privados dos direitos mais elementares. Atualmente, muitos moradores das periferias não têm acesso ao conhecimento, não sabem os motivos dessa invisibilidade que eles vivem no seu dia a dia e não são estimulados a participar da vida civil, com o pleno exercício de seus direitos.

“Muitas vezes o hip-hop se refere à criminalidade, mas é o que as pessoas das periferias são obrigadas a conviver. Elas vão falar da violência e da criminalidade e vão se expressar em tom de revolta”, disse Lua. Ela também apontou uma discrepância. Festivais de rap que estão sendo mais frequentados por brancos interessados naquilo que eles consideram uma “moda”, do que pelas pessoas periféricas que efetivamente fazem e vivem o hip-hop. “Essas pessoas não têm R$ 200, R$ 300 ou mesmo R$ 500 pra pagar num ingresso vip que vai lhes permitir ver e ser ouvido”, alertou Lua.

Marcos Vieira (PDT) externou todo seu apoio e reconhecimento ao hip-hop, representado por Samuka MC e Lua D’Avila. “Vocês representam essa cultura que é uma manifestação da periferia. Eu sou da periferia e sei bem como é ser invisibilizado. Vocês dizem a realidade, mas há muitos que se recusam a ouvir”, disse o vereador. Ele frisou que a Câmara é um espaço plural. “Embora alguns não concordem, temos vereadores que defendem a cultura hip-hop e eu me coloco entre eles. Inclusive, meu indicado para o recebimento do Prêmio Cultura e Divulgação é um artista do grafite”, afirmou Vieira.

Em resposta, Samuka esclareceu que a Associação tem um trabalho psicológico junto às crianças. “Não seria eu, que não sou formado em psicologia, que levaria isso para as crianças, mas a Associação dos Rimadores conseguiu parcerias que possibilitaram esse trabalho. Isso também é hip-hop. Quem é negro conhece a ferida do racismo e sabe que muitas vezes é necessário buscar a cura. O hip-hop pode ser uma cura”, afirmou.

Herivelto Oliveira (Cidadania), esclareceu que hip-hop não é só música. “Além de ser música, é comprometimento, é valor, é arte e é quase um tratado sobre tudo que diz respeito à cultura negra”, afirmou. “Após 330 anos de existência da cidade, finalmente há uma discussão efetiva sobre a colônia negra, que vai ganhar um parque atrás da praça Zumbi dos Palmares e se chamará Parque da África”, disse o vereador. Ele afirmou que o Hip Hop está ganhando muitos espaços na cidade, e isso serve para corrigir um erro histórico. “O negro ficou muito tempo como um cidadão de segunda categoria, ou nem sequer era mencionado. A gestão Greca está fazendo esse reconhecimento", finalizou Herivelto.