A casa mal-assombrada de Curitiba: a família que nunca mais voltou

por Fernanda Foggiato | Revisão: Vanusa Paiva — publicado 14/08/2022 08h30, última modificação 26/08/2022 07h48
Confira, na quarta e última parte da história, as lembranças e lendas do Capão da Imbuia.
A casa mal-assombrada de Curitiba: a família que nunca mais voltou

Nelson Raimundo da janela onde viu, há quase meio século, o começo da história. (Foto: Michelle Stival da Rocha/CMC)

“A rua ficou lotada de gente. Saiu até na televisão.” Aos 87 anos de idade, o projetista aposentado Nelson Moacir Raimundo diz lembrar muito bem de toda a movimentação de policiais, repórteres e curiosos, motivada pelas “pedras voadoras”, quase meio século. O homem ainda mora a poucos metros de onde ficava a casa supostamente mal-assombrada – hoje uma obra paralisada, para a construção de um empreendimento comercial. “Era um monte de gente, os policiais entravam nas casas, atropelando os cachorros”, recorda. “Só faltava a Polícia Federal aqui.”

Na noite do primeiro apedrejamento, registrado no dia 2 de janeiro de 1974, uma quarta-feira, o homem conta que acordou, assustado, com gritos. “Saia!”, bradava Ildefonso Till, proprietário do imóvel na esquina das ruas Professor Nivaldo Braga e Delegado Leopoldo Belczak. Proferindo xingamentos como “safado” e palavras de calão, o vizinho chegou a pensar que Raimundo era o responsável por lançar as pedras. Segundo o aposentado, ele se levantou e, depois de espiar pela janela, decidiu sair, de pijama mesmo, calçando chinelos, para tentar entender o que estava acontecendo. “Ninguém atira uma pedra a mais de 30 metros”, avalia.

>> Perdeu alguma parte da história? Confira:

Parte 1 – A casa mal-assombrada de Curitiba: o mistério das “pedras voadoras”

Parte 2 – A casa mal-assombrada de Curitiba: as missas e as chaves benzidas

Parte 3 A casa mal-assombrada de Curitiba: das “pedras voadoras”, só ficou a história

Raimundo e a mãe se mudaram para o Capão da Imbuia em 1964, para a 92ª “casa patente” entregue em Curitiba pela Companhia Brasileira de Habitação (Cibralar). Financiada pelo já extinto Banco Nacional de Habitação (BNH), a residência era anunciada como o “símbolo da casa própria, porque pode ser adquirida por qualquer pessoa, pois a sua aquisição é baseada no salário mínimo”. Os imóveis, propagandeavam, eram de concreto pré-moldado e tinham “características revolucionárias”, “muito mais avançadas que qualquer casa comum”.

Solteiro, nunca se casou. Na juventude, desejava “ir para o mosteiro”, sonho abandonado, explica, porque precisava cuidar da mãe. Desde que ela faleceu, em 2010, aos 95 anos de idade, o aposentado vive sozinho. Na manhã da entrevista, sua companhia era o radinho de pilhas, sintonizado em um programa religioso. A estante ao lado da cama é adornada por terços. Fotos antigas da família dividem o espaço com imagens católicas, simbolizando Jesus Cristo e Nossa Senhora. Santinhos com orações, colados nos móveis antigos, completam a decoração do cômodo empoeirado.

 

 

A relação com o filho dos Till e outros quatro rapazes do bairro, afirma, era conturbada. “Tinham raiva de mim, me caluniavam, com inveja. Fui caluniado a vida toda”, relata, sentado na mesma cama de onde foi tirado, há quase meio século, sob a acusação de ser o atirador. Raimundo narra que, alguns meses antes dos apedrejamentos terem início, o grupo chegou a tentar armar uma “armadilha” para ele, para incriminá-lo por um falso crime. “Vamos proteger nossas mulheres”, um deles teria dito. “Você ainda vai cair do cavalo”, ameaçou outro membro do grupo.

No começo, eu achei que aquilo era uma grande palhaçada”, diz. Só que as “pedras voadoras”, explica, não deixavam rastro no ar. “O telhado acabou inteirinho”, recorda. “O casal até se mudou, foi morar no litoral. Pouco tempo depois, não lembro ao certo.” Alguns vizinhos, segundo ele, creditavam o episódio a uma “manifestação demoníaca”. Já a tese de Raimundo é que seu anjo da guarda fez aquilo, para protegê-lo do grupo de rapazes do bairro, que tentavam lhe prejudicar.

Nunca ouvi”
Moradora da região desde os 8 anos de idade, Marily Lessnau, hoje com 76 anos, lembra da família Till, mas não dos apedrejamentos. “Essa coisa de assombração, nunca ouvi falar”, afirma. Em 1974, ela conta que morava no Mato Grosso, em função do trabalho do marido. “Não lembro do pai ter comentado nada”, reforça.

De volta a Curitiba, lá por 1976, Marily conta que chegou a morar, por alguns anos, na casa supostamente mal-assombrada, após a mudança dos Till. Jura nunca ter presenciado nada de estranho no local. Antes dela, complementa, outra família já havia residido ali.

A lenda do bosque
Aos 59 anos de idade, o servidor municipal Paulo Gomes mora no bairro há 40 anos. Ele é o funcionário mais antigo do Museu de História Natural do  Capão da Imbuia (MHNCI), onde trabalha desde 1983: “Costumo brincar que faço parte do acervo”.

Quase dez anos depois das “pedras voadoras”, havia, segundo Gomes, boatos, um “diz que me diz” sobre a casa de esquina, de frente para o bosque. “Contam que teve até rapel [dos policiais] nas árvores”, afirma sobre a operação policial na tentativa de localizar o suposto atirador.

“Naquela época, as pessoas vinham visitar o museu por curiosidade das histórias”, aponta. O bosque, revela o servidor, guarda outros mistérios. A lenda é que um padre teria se enforcado ali, muito tempo atrás. “Achavam que ele era a assombração”, recorda. “O falatório da época era isso.” A árvore onde o corpo teria sido encontrado, na trilha que margeia o terreno, apodreceu e “foi sumindo”.

Na década de 1980, diz o servidor, ele montava as vitrines, dentro do bosque, onde ficavam expostas diferentes espécimes taxidermizadas (ou empalhadas, na linguagem popular). As trocas do acervo eram realizadas no cair da noite, quando a visitação já havia sido encerrada.

Ali no escurecer, em meio às árvores centenárias, munido apenas de uma lanterna, já que a trilha não tem, até hoje, postes de energia elétrica, Gomes admite que já levou alguns sustos. “Eu ficava assustado. Eu sentia passos passar assim por trás. Olhava e não tinha ninguém. Bem no local onde diziam que o padre tinha se enforcado”, rememora.

Com o passar dos anos de trabalho, no entanto, o servidor público garante que não ouviu, ou sentiu, mais nada de estranho. Doada pelas famílias Camargo e Reginato à Prefeitura de Curitiba, em 1953, com a condição de que se preservasse a vegetação, a área onde fica o Museu de História Natural Capão da Imbuia (MHNCI) possui 36 mil m2.

Localizado em um remanescente de Floresta com Araucária, tem árvores centenárias. O MHNCI foi instalado em 1963, ainda com o nome de Instituto de Defesa do Patrimônio Natural. Até 1956, havia funcionado como uma seção do Museu Paranaense. No convênio firmado, em 1959, entre a prefeitura e o governo estadual, a proposta era que se chamasse Jardim Botânico de Curitiba.

O Museu de História Natural do Capão da Imbuia atualmente é uma divisão do Departamento de Pesquisa e Conservação da Fauna da Secretaria Municipal do Meio Ambiente (SMMA). O acervo do MHNCI está tombado como Patrimônio Histórico e Artístico do Paraná e a sede constitui uma Unidade de Conservação de Curitiba.

A família Till    
Já viúvo, Ildefonso Till faleceu em Guaratuba, litoral do Paraná, no dia 29 de dezembro de 2014. A esposa, Irene de Oliveira Till, havia falecido na capital, Curitiba, aos 77 anos de idade, no dia 1º de dezembro de 2008.

Filho do casal, Celso Ildefonso Till, que na época dos apedrejamentos tinha 19 anos, também já é falecido. Ele residia em Carapicuíba (SP) e foi a óbito em Osasco, cidade vizinha localizada na Região Metropolitana de São Paulo, no dia 12 de abril de 2005, antes mesmo dos pais. Tinha 50 anos de idade.

Nossa Memória
O mistério da casa supostamente mal-assombrada, atacada por “pedras voadoras”, foi resgatado pela Diretoria de Comunicação Social (DCS) da Câmara Municipal de Curitiba (CMC). Dividida em quatro partes, publicadas nas duas últimas semanas, a história é tema da primeira temporada da série “Curitiba Horror Stories”. O projeto faz parte do Nossa Memória.

Iniciado em 2009, o Nossa Memória tem como proposta o resgate e a valorização da história da Câmara Municipal e de Curitiba, já que ambas se entrelaçam. Além das reportagens especiais, a página reúne “Os Manuscritos”, com documentos desde a fundação da cidade, em 29 de março de 1693; e o “Livro das Legislaturas”, que mostra quem foram os vereadores da capital paranaense desde 1947. Também traz bancos de dados como o “Aconteceu” e o “Rua & História”, entre outros materiais com fatos marcantes da cidade, todos disponíveis para a consulta da população.

** Confira AQUI as referências da pesquisa histórica para as matérias especiais "A casa mal-assombrada de Curitiba".