Câmara na História: O Código de 1932 e a segunda “primeira” legislatura
A segunda "primeira" legislatura da República, ou primeira legislatura da Era Vargas, assumiu em dezembro de 1935. (Arte: Emily/Curbani/CMC)
“Senhores da comissão, recebo de vossas mãos o projeto de lei eleitoral que vai ser submetido ao exame e apreciação do governo. Tenho a impressão de que me entregam a carta de alforria da democracia brasileira. [...] Processo dentro do qual será permitida a consulta à opinião do país em um regime verdadeiramente livre e democrático”, discursou, em 26 de janeiro de 1932, o então ministro da Justiça, Mauricio Cardoso. Com a fala, ele encerrava os trabalhos da comissão de reforma eleitoral, criada em dezembro do ano anterior.
Promulgado por Getúlio Vargas, que desde a Revolução de 1930 chefiava o governo provisório – há 90 anos –, no dia 24 de fevereiro, o decreto número 21.076, mais conhecido como o Código Eleitoral de 1932. A norma trouxe importantes avanços para a democracia brasileira, como os votos feminino (ainda facultativo) e secreto. Os marcos foram consolidados na Constituição de 1934 e na lei 48/1935, que reformou a legislação eleitoral.
O voto feminino foi uma luta travada desde o século 19. A Constituição do Império, em 1891, não trouxe uma proibição explícita, já que as mulheres não são citadas entre quem não podia se alistar, caso dos mendigos e os analfabetos, mas tampouco o autorizou. Na Constituinte, houve embates sobre emendas para permitir, por exemplo, o voto às mulheres com títulos científicos e professoras, desde que não estivessem “sob o poder marital, nem paterno, bem como às que estivessem na posse de seus bens”, mas as propostas foram rejeitadas.
No começo do século 20, o movimento feminista ganhou força pelo país. Em Curitiba, uma das precursoras foi a educadora, escritora e poetisa Marianna Coelho. Ela defendia a emancipação da mulher por meio de bandeiras como a conquista de seus direitos políticos e da participação no mercado de trabalho. Coelho chegou a receber o apelido de "Beauvoir tupiniquim", em referência à francesa Simone de Beauvoir.
“Homens maiores de 60 anos e as mulheres em qualquer idade podem isentar-se de qualquer obrigação ou serviço de natureza eleitoral”, dizia o Código de 1932. Pela Constituição de 1934, mulheres com função pública remunerada passaram a ser obrigadas a votar. No Código Eleitoral de 1945, o voto só era facultativo às “mulheres que não exerçam profissão lucrativa”. O voto obrigatório a todas as mulheres foi instituído pelo Código Eleitoral de 1965.
O Código de 1932 também determinou, pela primeira vez, o voto obrigatório para os homens entre 21 e 60 anos de idade. Àqueles com mais de 60 anos, assim como às mulheres, o voto era facultativo. Na Carta de 1934, a idade mínima para votar foi reduzida para 18 anos, a exemplo do que é adotado atualmente.
Já os mendigos, os analfabetos e os “praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior”, seguiram de fora do processo democrático. Foi só na Constituição de 1988 que o voto para analfabetos passou a ser facultativo.
Havia, no Código de 1932, um capítulo destinado ao voto secreto, prevendo o isolamento do eleitor num “gabinete indevassável”. Para dar maior segurança aos pleitos, o título ganharia a foto e a impressão digital do eleitor. Já as cédulas, colocadas em envelopes e então depositadas nas urnas, seguiram sem um padrão. Na época, elas costumavam ser distribuídas pelos partidos ou publicadas pelos jornais.
O decreto assinado por Vargas também já previu o “uso das máquinas de votar” – hoje conhecidas como urnas eletrônicas. O sistema, aplicado apenas em 1996, deveria ser “regulado oportunamente pelo Tribunal Superior”. Outras inovações foram criar a Justiça Eleitoral e adotar o sistema de representação proporcional, o registro de candidatos por partido político, as alianças partidárias e as candidaturas avulsas.
Elas vão às urnas
A primeira eleição em que as curitibanas puderam votar, para a escolha dos deputados da Assembleia Nacional Constituinte, foi realizada no dia 3 de maio de 1933, uma quarta-feira, feriado nacional. Foi o primeiro pleito organizado pela Justiça Eleitoral. Em todo o país, mesmo com a inclusão das mulheres e o voto obrigatório para homens de 21 a 60 anos de idade, a participação foi baixa, com a adesão de menos de 4% da população.
Enquetes publicadas pelo “Correio do Paraná”, entre os dias 9 de fevereiro e 10 de março de 1933, mostram que as curitibanas ainda divergiam sobre o voto. Das 20 entrevistadas, 16 declararam que a mulher deveria se dedicar à família e aos afazeres domésticos. “Pudemos observar que a maioria das senhoras e senhoritas da nossa sociedade, obedecendo a uma tradição da sociedade brasileira, são contrárias ao voto feminino. A missão da mulher é no lar, preparando o Brasil de amanhã. E é essa missão que santifica o sexo formoso”, escreveu o jornal.
No Paraná, segundo informações do jornal “Diário da Tarde”, 34.435 eleitores se alistaram, 7.068 deles em Curitiba. Desses, 5.688 compareceram às urnas. Não há estatísticas, entretanto, de quantas mulheres fizeram o título ou votaram.
O voto secreto ganhou mais destaque nos jornais da capital do que a presença feminina nas seções eleitorais. Na edição de 7 de maio, a “Gazeta do Povo”, por exemplo, comentou o caso de uma “senhorita” impedida de votar na 7ª seção eleitoral, já que o título dela estampava, em vez de sua fotografia, o retrato de um “carão barbado”.
O resultado do pleito saiu no dia 17 de maio de 1933. A única mulher eleita, em todo o Brasil, foi Carlota Pereira de Queiroz, candidata em São Paulo. Foram eleitos, no Paraná, os deputados constituintes coronel Plinio Tourinho (Partido Liberal), general Raul Munhóz (Liga Católica), Lacerda Pinto (Liga Católica) e Antonio Jorge Machado Lima (Partido Social-Democrático), que ajudariam a elaborar a Constituição de 1934.
Segunda “primeira” legislatura
Durante a Era Vargas (1930-1945), a Câmara Municipal de Curitiba (CMC) só teve uma eleição, realizada no dia 12 de setembro de 1935. Cinco anos depois de se despedir do primeiro ciclo de legislaturas do pós-Monarquia, encerrado após a Revolução de 1930, o Legislativo empossaria, no dia 2 de dezembro daquele ano, os vereadores da segunda “primeira” legislatura da República.
Segundo registros do jornal “O Dia”, Curitiba foi dividida em quatro zonas eleitorais, totalizando 18.263 eleitores, número já bem maior que o registro em 1933. Conforme a Constituição do Paraná de 16 de maio de 1935, os candidatos a vereador precisavam ter no mínimo 21 anos e residir no Município há pelo menos dois anos.
Em 5 de setembro, a coluna “Novidades políticas”, do jornal “Diário da Tarde”, relatou: “Na chapa integralista de candidatos à Câmara Municipal de Antonina, figura como candidata a exma. [excelentíssima] sra. d. Maria Clara Leão Fonseca”. Ela era neta do desembargador Agostinho Ermelino de Leão, patrono da Comarca de Curitiba, e filha do ervateiro Ermelino Agostinho de Leão, um dos fundadores da antiga Academia de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.
Já entre os candidatos listados ao pleito para a capital, não houve nenhuma mulher. Conforme o edital da Justiça Eleitoral da Comarca de Curitiba, publicado, em 10 de setembro, pelo jornal “O Dia”, 36 homens concorrem às 12 cadeiras do Legislativo da capital. Cada legenda – Partido Social Democrático (PSD), Ação Integralista Brasileira (AIB) e Partido Social Nacionalista (PSN) – lançou 12 candidatos.
“Correram nesta capital em ordem, mas sem o mínimo de entusiasmo, as eleições de vereadores”, citou, na edição de 13 de setembro, o jornal “Diário da Tarde”. “Não se pode negar, porém, que cada cidadão votou como quis e em quem quis. Não houve pressão nem cabala [troca do voto por favores].”
A sessão de posse, seguida da eleição para a escolha do presidente da CMC, foi realizada no dia 2 de dezembro. “Estão sendo convocados para o dia 2 do corrente [mês] os 12 camaristas eleitos para constituição do 1º Legislativo Municipal de Curitiba na 2ª República. Naquele dia será eleito o presidente da Câmara Municipal”, noticiou, no fim de novembro, o “Diário da Tarde”.
Os “pessedistas”, como eram chamados os políticos filiados ao PSD, formaram maioria na Câmara, ocupando 7 das 12 cadeiras. Foram eles: Aluizio França, médico; Arcésio Guimarães, industrial; Ezequiel Honório Viale, industrial; Linneu Ferreira do Amaral, engenheiro civil; Manoel Francisco Correia, industrial; Nicolau Mader Junior, industrial; e Pedro Nolasco Pizzatto, comerciante e industrial.
Pelos integralistas, fizeram parte da segunda “primeira” legislatura, ou a primeira legislatura da Era Vargas (chamada também de Segunda República): General Raul Munhoz, militar reformado; Luiz Machuca, chefe da Estação Ferroviária; e Nelson Lins d'Albuquerque, acadêmico de Direito. O PSN fez duas cadeiras, elegendo o médico Carlos Heller e o advogado Ciro Silva.
Para presidir a Casa, foi eleito, por 11 votos, o pessedista Arcesio Guimarães. Conforme a ata da sessão de posse, o engenheiro Linneu Ferreira do Amaral obteve 1 voto. “O sr. Arcesio Guimarães é um nome de responsabilidade, de tradição, de probidade na vida conservadora do nosso Estado”, elogiou o “Diário da Tarde”. O camarista era o presidente da Associação Comercial do Paraná (ACP).
Os demais cargos da Mesa Diretora, à época apenas o de primeiro-secretário e o de segundo-secretário, também ficaram com o PSD, respectivamente com Ezequiel Honório Viale e Pedro Nolasco Pizzatto. Assim como Guimarães, os vereadores eram industriais de Curitiba.
“Elementos comunistas”
Realizada a eleição da Mesa, Guimarães declarou aberta a primeira de três sessões preparatórias para a solene de instalação que se realizaria no dia 14 de dezembro, às 14 horas. A primeira proposta em pauta, sugerida pelo integralista General Raul Munhoz, foi um voto de congratulações ao presidente Getúlio Vargas “pela maneira eficiente e enérgica do Governo da República em punir em reprimir o movimento sedicioso [subversivo] irrompido em diversos pontos do país, principalmente no Rio de Janeiro, cujo movimento foi provocado por elementos comunistas”.
Ciro Silva ponderou que era justo, sim, saudar o presidente – eleito indiretamente pelos deputados constituintes, em julho de 1934 –, mas que se tratava de “elementos extremistas”. Para o camarista, não caberia a associação a um partido político, sendo essa a redação acatada para o requerimento.
A sessão solene contou com a participação das autoridades locais, como o governador Manoel Ribas e o prefeito Jorge Lothário Meissner. “Dia jubiloso é o de hoje. Depois de tanto tempo de nossa inexistência, talvez o maior desde à época da nossa criação política [superado pelo fechamento por 10 anos, entre 1937 e 1947, no Estado Novo], reinstalamo-nos hoje”, celebrou o médico Aluizio França, encarregado de discursar em nome dos colegas.
“Cometeria inominável injustiça se não lembrasse, com respeito e gratidão, como homenagem, o trabalho notável de todos aqueles nobres e honrados legisladores que passaram por esta Casa, edificaram o nosso Município e nos deram, com leis sensatas e resoluções inteligentes, uma das mais belas cidades do Brasil”, continuou Franças. “Homens de sã consciência, homens bons, como tão pitorescamente se referem os papéis velhos, que dão notícia, lá em 1693, da nossa primeira instalação.”
“Criando um caso”
Um dos maiores embates travados na legislatura foi com os padeiros. O conflito começou em setembro de 1936, quando a CMC começou a discutir um projeto que modificaria o descanso semanal da categoria. Pela lei 23/1936, de junho, não haveria a fabricação de pães em Curitiba aos domingos e até as 14 horas das segundas-feiras, “de modo que o descanso semanal dos padeiros se dê das 7 horas de domingo até as 14 horas de segunda-feira”.
“Os pães de qualquer espécie, fabricados nas segundas-feiras, só poderão ser expostos à venda, nesse dia, depois da hora 18”, acrescentava. Tanto os fabricantes quanto os revendedores que infringissem as regras estariam sujeitos a pesadas multas. Já a lei número 39, sancionada em outubro, autorizava a produção diária de pão em Curitiba, “sem exceção dos dias de domingos e feriados nacionais”. A mesma norma, no artigo 2º, facultava às barbearias abrir aos domingos e nos feriados trabalhar até o meio-dia.
“Criando um caso” foi o título da matéria dada, em 21 de setembro de 1936, pelo “Diário da Tarde”. Conforme o jornal, os padeiros estavam “profundamente descontentes” com deliberação tomada pela Câmara Municipal. “A questão em foco vem por em cheque os honrados trabalhadores que trocam o dia pela noite e, como todos nós, precisam de descanso”, opinou a publicação, semanas depois, quando a lei havia sido aprovada.
“Falamos com alguns operários padeiros e proprietários, fomos informados que com a lei, ou sem ela, não haverá pão às segundas-feiras, pois ninguém sujeitar-se-á a trabalhar 365 dias por ano. Além disso, somos cristãos e desejamos guardar o domingo”, informou o “Diário”. A decisão teria sido resultado de uma assembleia com mais de 200 trabalhadores.
A categoria decidiu buscar o prefeito Meissner que, com a pressão, convocou a Câmara para uma sessão extraordinária, no dia 21 de dezembro, para discutir a alteração da lei. No dia da votação, narrou a imprensa, um grande número de padeiros compareceu ao Paço Municipal, onde os vereadores se reuniam, “pedindo justiça aos homens que trocam o dia pela noite”. O presidente do Sindicato dos Padeiros, João Messias de Paula, teve espaço para se manifestar da tribuna.
Em 1937, Aluizio França foi eleito presidente da Câmara e os aliados de Arcesio Guimarães, que buscou a reeleição, mas perdeu por um voto, acusaram alguns camaristas de traição. Enquanto isso, o imbróglio com os padeiros continuava... “Subirá o preço do pão?”, indagou, em fevereiro, o “Diário da Tarde”. “Com a abolição do descanso semanal, os proprietários são obrigados a colocar mais gente para trabalhar”, argumentou, reproduzindo a queixa dos empresários.
Em março de 1937, o vereador Carlos Heller apresentou um projeto de lei para revogar a regulamentação. Depois de muita discussão, a decisão final saiu na sessão de 6 de outubro, mantendo a lei do jeito que estava. “Esta decisão significa que os padeiros e os barbeiros perderam o descanso dominical”, avaliou o “Diário”.
A nova despedida
Os camaristas se reuniram pela última vez, no Paço Municipal, no dia 10 de novembro de 1937. O presidente Aluizio França rebatia o editorial de “O Estado”, com críticas a ele. Então apresentou a carta de renúncia ao cargo e se retirou da sessão, com Nicolau Mader Junior assumindo a Presidência interina.
Na sequência, Nelson Lins d'Albuquerque pediu a palavra e “levou ao conhecimento da Casa que acaba de receber o Governo Federal, posso eu dizer, uma nova Constituição da República, dissolvendo todos os Poderes Legislativos e por conseguinte foi também dissolvida esta Câmara”.
Os vereadores divergiram sobre continuar, ou não, com a sessão. Para Manoel Correia, as notícias eram “de caráter particular” e os trabalhos deveriam ser mantidos. Entre a aprovação de projetos e indicações à Prefeitura de Curitiba, os camaristas discursam sobre a “estranheza” com que receberam a renúncia de França e o possível novo fechamento dos Legislativos. O último a usar a palavra foi Ciro Silva, que, ao encerrar o discurso, lançou: “Viva a democracia!”.
A notícia do fechamento dos Legislativos realmente era verdadeira, e não um boato. Vargas havia outorgado a Constituição de 1937, conhecida como a Carta “Polaca”. Era o começo do Estado Novo, que deixaria a Câmara de Curitiba fechada por mais de dez anos. A Casa só reabriu em dezembro de 1947, quando deu início à contagem atual das legislaturas. Esse é o tema da última reportagem da série “Câmara na História”, na próxima semana.
** Confira AQUI as referências da pesquisa histórica.
Câmara na História
A Câmara Municipal de Curitiba (CMC) conta as legislaturas a partir do ano de 1947, após o fim do Estado Novo, mas a verdade é que a trajetória da instituição começou muito antes, lá no Brasil Colonial, e segue pelo Império, pela República Velha e pela Era Vargas até chegar nos períodos democráticos, aterrissando na Nova República, fundada com o fim da Ditadura Militar. Na série de reportagens “Câmara na História”, a Diretoria de Comunicação Social avança no projeto Nossa Memória, resgatando as principais características do Legislativo e da própria cidade em cada um desses períodos.
A ideia é que a população possa ter um panorama de como a CMC e Curitiba nasceram e se transformaram juntas, caminhando lado a lado, dentro da história do Brasil. Entre o fim de outubro e o dia 18 de novembro, serão publicadas sete reportagens especiais, às quintas e sextas-feiras. E também vai ter história rolando nas redes sociais da Câmara, de uma forma mais descontraída e acessível.
Iniciado em 2009, pela Diretoria de Comunicação Social, o Nossa Memória é um projeto de resgate e valorização da história da Câmara Municipal e de Curitiba, já que ambas se entrelaçam. Além das reportagens especiais, a página traz, por exemplo, “Os Manuscritos”, que reúnem documentos desde a fundação oficial da cidade, em 1693, e o “Livro das Legislaturas”, com os vereadores da capital paranaense desde 1947.
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