Audiência pública denuncia violência contra população negra
Debate com lideranças religiosas e intelectuais foi realizado em formato online, com transmissão ao vivo. (Foto: Carlos Costa/CMC)
Audiência pública da Câmara Municipal de Curitiba (CMC), realizada na tarde desta sexta-feira (4), reuniu lideranças religiosas e intelectuais para debater a história e os desafios da luta antirracismo no Brasil e na capital paranaense. Com o tema “Da cruz ao quiosque: como resgatar o direito de viver?”, a atividade foi proposta pelo vereador Renato Freitas (PT).
A atividade lembrou dos assassinatos do congolês Moïse Kabagambe e de Durval Teófilo Filho, no estado do Rio de Janeiro, que motivaram protestos contra a xenofobia e o racismo em todo o país, no começo de fevereiro. Em Curitiba, o ato foi realizado no dia 5, em frente à Igreja do Rosário. A entrada dos manifestantes no templo, após a missa, resultou em Processo Ético Disciplinar (PED 1/2022) contra Freitas, que tem até 17 de março para apresentar defesa prévia ao Conselho de Ética da Casa (saiba mais).
Também foi denunciada a morte do guineense Quintino Correia, em Curitiba, no dia 24 de fevereiro. Vítima de tentativa de homicídio no final de dezembro, sob investigação da Polícia Civil do Paraná, ele chegou a participar do ato na capital e a dar relato contra o racismo. A causa da morte, indica a certidão de óbito, foi “choque refratário, discrasia sanguínea, insuficiência hepática”.
>> Assista ao debate na íntegra, no YouTube na CMC.
“Tenho certeza de que Deus ouviu [seu clamor], que nós estamos ouvindo, e que sua vida não será em vão. E que será instrumento para nossa luta, que começou muito antes da gente”, disse Freitas. Para ele, “tempos muito difíceis, tempos em que o mundo parece estar de ponta cabeça” pedem o exercício da fé, com olhar especial à população negra, vista como mão de obra barata ou ameaça à branquitude.
“Infelizmente não somos incluídos em diversas ordens da organização do poder”, continuou. O propositor do debate lembrou que apenas 3 dos 38 vereadores da CMC são negros. Ele deseja que Curitiba um dia se orgulhe por ser “uma capital brasileira, portanto uma capital negra”. “Que a gente seja tratado como cidadão e não como subcidadão, como bestas que puxam carga.”
Pedindo “justiça histórica e restituição” à população negra, o coordenador nacional da Frente de Evangélicos Pelo Estado de Direito, pastor Ariovaldo Ramos, declarou apoio a Freitas. “Nós não podemos permitir que nosso grito seja silenciado. Nós não voltaremos à senzala, que a casa grande insista na senzala. Nós vamos tomar a casa grande. Porque esta agora é a nossa terra”, afirmou.
O pastor argumentou que existe um processo histórico de invisibilização da cultura das pessoas escravizadas. “A raça humana é negra, assim como é negro o fundador do cristianismo e todos os profetas que o sucederam, como os seus apóstolos. Porque a fé cristã é afro-asiática”, defendeu. “É disso que estamos falando, da necessidade de mudar os vitrais nas igrejas, para contar a verdadeira história do cristianismo, de repintar os personagens cristãos.”
Manifestações de apoio
Entre falas sobre o racismo estrutural, a história da Igreja do Rosário e a violência contra a população negra, os demais convidados também se solidarizaram a Freitas. Professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisadora das populações afro-brasileiras, cultura e religiosidade populares, Liliana Porto considera uma “ignorância histórica” a repercussão negativa do ato na Igreja do Rosário, templo vinculado à luta antirracista.
“A história de profanação de templos não é do povo negro profanando, mas do povo negro tendo seus templos profanados. [...] A gente não tem história [disso] no Brasil, ainda mais em uma Igreja do Rosário, seria absolutamente sem sentido pensar que aquela manifestação antirracista entraria ali senão que para ocupar um espaço que historicamente lhe é de direito. Porque aquela é a história do povo negro em Curitiba e de sua resistência”, analisou Liliane.
A pastora Ana Azzevedo, ativista cultural e bacharel em Direito, também acha importante que o povo de Curitiba conheça a história da Igreja do Rosário. Ela lembrou que “o racismo nos atravessa” e “dói todos os dias” e que não pode ser negado à população negra o direito de reivindicar sua dor nos templos religiosos. “Quando nós adentramos à igreja, esse espaço é nosso por direito. [...] não é por vandalismo. É porque a gente tem consciência da construção daquele espaço e o que ele representa pra nós”.
“Um texto, fora do contexto, vira pretexto”, citou o padre Júlio Lancellotti, que relatou ataques, principalmente de grupos católicos, por apoiar o vereador. “Deus habita em nós, não em espaços. Os espaços são símbolos, são sinais. Eles têm seu contexto histórico, como foi lembrado, mas o sagrado é a pessoa”, declarou.
Na avaliação do sacerdote, a “grande profanação” são a fome, o extermínio da juventude negra, o assassinato de travestis, o feminicídio e a violência contra crianças. “Uma coisa que tem que ficar bem clara é que não houve a profanação do espaço, mesmo desse espaço simbólico”, opinou. “Tudo isso que está acontecendo parece um delírio, um delírio racista, é um delírio desumano”.
“Jesus sofreu duas condenações. Uma condenação religiosa e uma condenação política. Condenações essas que hoje caíram por terra”, falou o diretor executivo do Educafro, frei David. Ele pediu que os cristãos de Curitiba “não deturpem Jesus Cristo” e “sejam honestos com vocês, com a fé de vocês”.
“Eu estou quase com vontade, quase com vontade, já que tenho relação com o papa e somos amigos, [de] mandar o vídeo [da entrada na igreja] para ele ver e ele escrever umas linhas, bastando dizer 'Renato Freitas, estou do seu lado’. O papa é capaz de fazer isso”, cogitou o filósofo e escritor Leonardo Boff. “E conforme for eu escrevo e vou pedir uma palavra ao Renato Freitas e uma severa advertência àqueles que cometem injustiça contra você”.
“Vocês ocuparam um lugar que foi sempre de vocês, a Igreja do Rosário. [...] que vocês construíram em cima de um cemitério”, continuou Boff. Segundo o intelectual, “aquela violência, injúrias que os donos da casa grande e seus descendentes davam aos escravos” hoje recaem sobre os afrodescendentes, os pobres, os marginalizados e a população LGBT. “Não fizemos a abolição ainda porque não fizemos a reforma agrária. Foram jogados no mundo, nas favelas. Temos essa dívida”, ponderou.
Líder da oposição e segunda-secretária da Casa, a vereadora Professora Josete (PT) acompanhou a discussão. As audiências públicas, assim como as sessões plenárias e outras atividades da CMC, têm transmissão em tempo real pelos canais do Legislativo no YouTube, no Facebook e no Twitter. Mais fotos do evento, realizado em formato virtual, estão disponíveis no Flickr.
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