A história da Guarda Civil do Paraná (1911-1970)
Integrantes da 1ª turma da Guarda Civil desfilam pela avenida Luiz Xavier no dia 25 de novembro de 1911. (Foto: Acervo Cid Destefani, Gazeta do Povo, Coluna Nostalgia, 15 de novembro de 1992)
Em 1831 a segurança pública no Brasil passou por uma grande reforma. Seu autor foi Diogo Antônio Feijó, um dos regentes que governaram o país após o retorno de Dom Pedro I a Portugal. O sucessor natural, Dom Pedro II, não tinha idade para assumir o trono, o que determinou esse hiato regencial durante o Brasil Império. Padre Feijó, quando ainda era ministro da justiça, extinguiu as antigas Forças Armadas das Capitanias, que eram compostas pela Tropas de Linha das Milícias e pelos Corpos de Ordenanças, criando em substituição a Guarda Nacional (lei de 18 de agosto de 1831) que deveria ter representações em todos os municípios do país.
Outra lei, de 10 de outubro do mesmo ano, altera o nome das recém-criadas corporações locais para “Guardas Municipais”. A regulamentação dessa lei foi estabelecida 12 dias depois, por meio de um decreto. Conforme esclarece Alci Romero em sua pesquisa “A Gênese da Polícia Militar no Estado do Paraná (1831-1874)”, esta regulamentação das Guardas Municipais estipulava características genéricas e disciplinares que a nova corporação deveria assumir nas cidades em que fosse adotada. Seu molde foi a Guarda Municipal de São Paulo, que se tornou o núcleo fundador da futura Polícia Militar daquele estado.
Curitiba, que era a 5ª Comarca da Província de São Paulo, só foi contemplada com um destacamento em 25 de junho de 1834. O inspetor Cláudio Frederico, atual comandante da Guarda Municipal de Curitiba, aponta o fato de que entre os livros pertencentes ao acervo histórico da Câmara Municipal, de fato encontra-se a “Qualificação dos Guardas Municipais 1835-1846”, o que demonstraria a existência dessa corporação militar.
Alci Romero, entretanto, lembra que dois anos depois seria criada, novamente por meio de lei provincial (10 de março de 1836), outra entidade para a defesa de Curitiba: a “Companhia de Municipais Permanentes”. De acordo com o pesquisador, a atuação dos permanentes também se mostrou irregular, esporádica e essa situação se prolongou até a Emancipação do Paraná, em 1853.
Este evento possibilitou que o primeiro presidente da província, Zacarias de Góes e Vasconcellos, assinasse a criação da “Companhia de Força Policial” (lei nº. 7/1854), embrião da atual Polícia Militar do Paraná. O regimento era constituído inicialmente por 67 homens e 33 armas de fogo. A entidade, de acordo com Romero, “não desempenhou uma atividade ativa junto à população, exatamente porque os presidentes provinciais aos quais estava subordinada preferiram deixá-la nos quartéis”.
A Guerra do Paraguai acentuou essa ausência, mas ao término do conflito, em 1870, a corporação contava com 140 integrantes e, em 1874, seu efetivo havia aumentado para 202 praças. Nesse mesmo ano seu nome foi substituído para “Corpo Policial da Província do Paraná”.
Polícia Científica
Conforme o pesquisador Clóvis Gruner em sua tese de doutorado “Paixões torpes, ambições sórdidas...” a Proclamação da República trouxe novidades em todas as áreas da sociedade, sendo que uma delas foi a da segurança pública, com a aprovação do “Código Penal Brazileiro”, em 1890. A nova legislação possibilitou a adoção de metodologias e inovações científicas que estavam revolucionando as forças policiais em países da Europa e na América.
Exames dactiloscópicos (impressões digitais) passaram a ser praticados no Gabinete de Identificação e Estatística (inaugurado em Curitiba no ano de 1895). Cinco anos depois, a Polícia do Paraná passou a usar a fotografia para a identificação de presos e também para o registro de cenas de crimes. Em 1914, foi inaugurado o Laboratório de Análises que realizava exames de sangue e de esperma, entre outros. Este órgão se somou ao Serviço Médico Legal (necrotério) para conferir à atividade policial um caráter mais científico, em acordo com as aspirações positivistas da época.
Nesse contexto de renovação, havia, também, a necessidade de uma melhor convivência entre a polícia e a população, o que só seria possível com patrulheiros de rua cordatos e gentis. Essa necessidade gerou, em 1904, a criação da primeira Guarda Civil de uma cidade brasileira [Rio de Janeiro, então Distrito Federal].
No Paraná, o artigo 8º da lei estadual 1041/1911 autorizou o presidente do estado [Francisco Xavier da Silva] a criar a Guarda Civil. Ela foi instituída pelo decreto estadual 262 de 17 de junho de 1911 e passou a atuar com sede num dos prédios do entorno da Praça Zacarias. A inauguração deste local se deu em 25 de novembro daquele ano e foi descrita pelo jornal “A República” daquele mesmo dia.
Conforme o periódico, as instalações da Guarda Civil estavam ornamentadas por buquês de flores naturais e, nas paredes, quadros com máximas morais. O evento inaugural contou com a presença de autoridades civis e militares, representantes da imprensa e outros convidados que puderam ouvir as palavras do doutor Stanislau Cardoso, Chefe de Polícia. Ele lembrou como a corporação foi criada e enalteceu seus objetivos. Outros discursos foram proferidos. Os 60 guardas-civis (confira abaixo o anexo “pdf 1”) que compunham aquele primeiro regimento permaneceram enfileirados na entrada do prédio e, após a inauguração, desfilaram pelas ruas da cidade recebendo muitos aplausos. “Eram os novos agentes da lei que o povo saudava em nome da própria segurança”, observou o jornalista Cid Destefani em matéria sobre a Guarda Civil publicada pela Gazeta do Povo em 1992.
Progresso
A criação da Guarda Civil também estava em consonância com a ideia de modernidade e progresso que Curitiba almejava desde que se tornou capital da Província. Países da Europa, sobretudo a França, exportavam tendências que eram adotadas (com maior ou menor grau de adesão) pelo resto do mundo, então não seria de todo equivocado encontrar elementos de “gendarmerie” na apresentação e na conduta daqueles novos policiais curitibanos. “Gens d’armes” (Homens de Armas) eram os integrantes das milícias surgidas em Paris durante a Revolução Francesa (1789) com a finalidade de tentar preservar a segurança da cidade. Com o tempo, a expressão ganhou outros contornos e se expandiu pelo mundo como sinônimo de polícia de elite.
Os uniformes cor azul-marinho utilizados pelos guardas-civis de Curitiba inspiravam confiança, sentimento que o povo não nutria, naquele momento, em relação ao Regimento de Segurança. A instituição, desde 1908 sofria os reflexos de uma tentativa de insurreição interna que resultou na morte de um dos revoltosos.
A definição da Guarda Civil como uma guarda de elite já estava presente na imprensa ( confira abaixo o anexo “pdf 2”) e nas discussões parlamentares que antecederam sua criação, como se pode depreender do debate havido entre os deputados estaduais Benjamim Pessoa e Jayme Reis [registrado no jornal “A República” de 27 de junho de 1911]. Reis defendia que a medida seria desnecessária, pois a solução do problema da criminalidade em Curitiba consistiria em aumentar o efetivo do Regimento de Segurança.
Pessoa rebateu com a seguinte argumentação: “a Guarda Civil tem uma significação moral mais elevada, effectivamente, porque este é um projeto de cidades grandes, de cidades prósperas, de cidades ricas, é até mesmo um adorno, um enfeite; a cidade servida por Guarda Civil composta de moços limpos, educados, bem instruídos, capazes de raciocínio, de lógica, aptos para distinguir bem a razão entre dois litigantes. Ella tem um ponto de vista mais lato, um horizonte mais vasto; uma cousa bonita, que dá nome a uma cidade, a um estado, a um governo; tem esta significação bela”.
A exigência de boa conduta por parte dos novos guardas-civis estava explícita no texto do decreto que criou a instituição [e que veio a embasar seu regulamento]. O decreto 262 de 15 de março de 1911, publicado pelo jornal “A República” em 24 de junho diz em seu artigo 28 que o guarda deve dirigir-se ao superior com inteira obediência e tratar com os companheiros e o público com a maior cortesia e seriedade. O artigo seguinte determinava que o guarda não deveria provocar ou alimentar discussões, e no cumprimento de suas funções deveria agir com prudência, calma e energia, tratando os delinquentes com respeito e humanidade. O texto vai além, estipulando restrições comportamentais aos agentes: o artigo 34 estabelecia que o guarda durante o serviço [que durava seis horas] não deveria fumar, conversar ou se sentar.
A reação popular
A estreia da nova corporação foi vista com desconfiança pela população, conforme se verifica numa crônica publicada em “A República” uma semana depois da implantação do serviço. O autor, que se intitula singelamente “Solidônio”, diz que num lugar onde o patrulhamento policial era até então praticamente nenhum, seria de se esperar que a população reagisse com estranhamento. “Era de supor, portanto, que aqui ou ali a intervenção do Guarda causasse contrariedade porque, se alguns, por prudência ou julgando justa qualquer admoestação, a ellas se submettiam, outros poderiam insurgir-se colocando acima dos princípios de tolerância os estos da vaidade, do orgulho, do sentimento de rebeldia que todo povo livre possue em maior ou menor somma”.
A crônica sugere que os guardas pareciam levar excessivamente ao “pé-da-letra” as normas e instruções municipais, como foi o caso da lei que proibia o trânsito pelas calçadas portando cargas (sem definir o porte dessas cargas). O cronista reclama que, após uma longa preleção moral, foi instado pelo guarda a andar pelo leito da rua XV por estar carregando um pequeno pacote que continha meras empadas (A República, 2 de dezembro de 1911).
Após este impacto inicial, a imprensa acabou por se acostumar com a novidade e a Guarda Civil passou a ser citada quase diariamente. Chama atenção, nesses primeiros tempos da corporação, a quantidade de eventos prosaicos, como o registrado pelo jornal “A República” em 31 de janeiro de 1912. Anunciava-se o fato de que um Guarda Civil havia encontrado um guarda-chuva perdido na Praça Osório e que o objeto estava na sede da Guarda à disposição do proprietário. Outras notícias destes primeiros anos descrevem cuidados da Guarda Civil em relação a moradores de rua, alcoolizados violentos, animais abandonados e também o combate ao tráfico de carne irregular [não abatida no Matadouro Municipal].
Mas não tardou para que os guardas-civis atuassem em episódios mais violentos, como o que é descrito por Ediméri Stadler Vasco em sua pesquisa “A cultura do trabalho na Curitiba de 1890 a 1920”. Ele menciona a situação que envolveu dois padeiros [Procópio Cléves e Francisco Fallavela] que trabalhavam na padaria de Paulo Dalle, na rua Conselheiro Barradas [antiga Rua do Serrito e futura Presidente Carlos Cavalcanti], no ano de 1914. Houve uma discussão entre os dois a respeito de 200 réis que uma criada havia passado a Francisco para que ele remetesse uma carta pelo correio, ação não levada a efeito, segundo Procópio. Ambos se feriram com objetos perfurantes contundentes [uma faca e uma ripa de madeira]. Um Guarda Civil que passava à rua naquele momento foi acionado pela esposa de Paulo Dalle e separou os contendores já gravemente feridos.
Em 1922, mesmo ano em que a Guarda obteve equiparação salarial com a Polícia Militar, o tenente Aristóteles Xavier publicou o manual “Gyria dos Delinquentes (Dialecto dos Malandros)” - republicado em 1978 pela Revista da Polícia Civil do Paraná. De acordo com o pesquisador Clóvis Gruner, o manual, hoje raro, foi feito aos moldes de outra pesquisa da mesma natureza lançada alguns anos antes pelo alagoano Elysio de Carvalho, um dos maiores entusiastas da ideia de “polícia científica”. Aristóteles Xavier, que à época exercia a função de instrutor na escola da Guarda Cívica [nome da Guarda Civil durante alguns anos] encerrava seu manual com um breve diálogo (confira abaixo o anexo “pdf 3”) construído por meio do emprego de algumas das expressões coletadas.
Outros fatos
Na virada dos anos 20 para os anos 30, os jornais “A República” e “A Gazeta do Povo” entraram numa polêmica a respeito dos salários pagos aos agentes da Guarda Civil [naquele momento conhecida como Guarda Cívica]. A “Gazeta” defendia que os agentes eram mal remunerados e que isso influenciava na qualidade da sua atuação. “A República” refutava as acusações, publicando em 17 de setembro de 1929 inclusive uma carta resposta do comandante da corporação capitão Francisco da Fontana Barreto que convidava os críticos para uma visita às “recém-hygienizadas” instalações da Guarda. A polêmica atingiu seu ápice quando a tentativa de suicídio da esposa de um Guarda Cívico foi atribuída pela “Gazeta” aos baixos salários pagos, de acordo com a edição de A República de 27 de abril de 1930.
Possivelmente tais fatos contribuíram para que em 11 de junho daquele mesmo ano, uma decisão judicial da “Corte de Apellação” conferisse o status de servidor público aos integrantes da guarda. A sentença proferia que o Guarda Cívico (ou Civil) “é um agente da autoridade pública, subordinado ao Chefe de Polícia, cujas funções auxilia por delegação, [portanto] deve ser considerado funcionário público para efeitos legais”.
Entre os meses de agosto e outubro de 1932, os integrantes da Guarda Civil foram incorporados ao Exército para atuarem junto às tropas federais na insurgência conhecida como “Revolução Constitucionalista”, conta o guarda-civil Miroslau Santchuck em texto publicado em 1969, na revista da Guarda Civil. Em 31 de janeiro de 1937, o chefe de polícia Roberto Barroso emitiu uma nota de pesar pelo falecimento do guarda Sebastião Siqueira, que foi publicada pelo jornal “O Estado”. Siqueira era o último guarda remanescente das primeiras turmas da Guarda Civil (ingressou em 18 de novembro de 1913), tendo permanecido na corporação durante 23 anos sem uma nódoa em sua ficha.
“Contar toda a história da Guarda Civil requer um livro bem volumoso”, disse Cid Destefani em sua coluna Nostalgia publicada pelo jornal Gazeta do Povo em 15 de novembro de 1992. “Com a implantação do regime militar em 1964, a Guarda Civil foi extinta em todo o Brasil sob a alegação de que não poderiam existir organizações paramilitares além da Polícia Militar, que é uma tropa auxiliar do próprio Exército. Foi uma pena. Os guardas-civis deixaram saudades”, lamentou o jornalista, falecido em setembro deste ano.
Galeria dos Heróis
O inspetor Cláudio Frederico, atual diretor da Guarda Municipal, é detentor de uma preciosa raridade: uma revista publicada pelo governo do estado em 1969, por ocasião do encerramento das atividades da Guarda Civil. A publicação contém as biografias de Paulo Pimentel (governador do estado), do coronel Julio Werner Hackradt (secretário de segurança) e do major Benur Augusto Muniz, ex-expedicionário que ocupava a direção da Guarda Civil do Paraná naquele momento. Fotos mostram o cotidiano da Guarda, os integrantes da corporação em seus locais de atividade, treinamentos físicos etc.
Um dos textos que compõem esta revista é o relatório de Durval Simões, Diretor da Subdivisão de Rádio Patrulha. Ele informa que “no decorrer desses anos de luta contra a delinquência de toda natureza, tombaram no cumprimento do dever os seguintes patrulheiros: em 16 de setembro de 1961, Waldomiro Ry; em 22 de junho de 1964, José Alcides de Lima; em 21 de dezembro de 1964, José Pereira de Araújo; em 15 de janeiro de 1967, Izidoro Siedelinski e em 29 de setembro de 1969, João Vieira. (...) Esses nomes, como não poderia deixar de ser, fazem parte da Galeria dos Heróis da Guarda Civil do Paraná, que, mesmo com sua extinção, jamais serão esquecidos”.,
Para o inspetor Frederico, a existência dessa revista realça ainda mais a necessidade de preservação das memórias tanto da Guarda Civil quanto da Municipal. “Um tributo a todos que doaram um pouco de suas vidas em favor da segurança pública de Curitiba”, afirma o policial. Ele ainda esclarece que doações particulares para o acervo da Guarda Municipal de Curitiba são bem-vindas.
Referências Bibliográficas
Destefani, Cid. Guarda Civil. Gazeta do Povo, Coluna Nostalgia (15 de novembro de 1992) - impresso
Destefani, Cid. A polícia na velha Curitiba. Gazeta do Povo, Coluna Nostalgia (23/11/2013)
Destefani, Cid. Imagens perdidas. Gazeta do Povo, Coluna Nostalgia (24/10/2009)
Garcia, Alex Ferreira. De Zacarias aos dias de hoje: a segurança pública em Curitiba. Revista Vernáculo, n. 17 e 18, 2006.
Gruner, Clóvis. Em torno à “boa ciência”: debates jurídicos e a questão penitenciária na imprensa curitibana. Revista de história Regional 8 (1): 67-94, Verão, 2003.
Gruner, Clóvis. Um bom estímulo à regeneração”: a Penitenciária do Estado e as novas estratégias da ordem na Curitiba da Primeira República. Revista História. São Paulo, 28 (2). Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Campus de Franca, 2009.
Gruner, Clóvis. Paixões torpes, ambições sórdidas: transgressão, controle social, cultura e sensibilidade moderna em Curitiba, fins do século XIX e início do XX. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em História. Curitiba, 2012.
Hemeroteca Digital Brasileira (coleção de jornais antigos)
Romero, Alci Fonseca. A gênese da Polícia Militar no estado do Paraná (1831-1874). Monografia apresentada ao Curso de Bacharelado e Licenciatura em História da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2000.
Souza, Camila Castro de. Casas e monstros em Curitiba, 1890-1920. Monografia apresentada para obtenção da graduação no curso de História da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2000.
Vasco, Ediméri Stadler. A cultura do trabalho na Curitiba de 1890 a 1920. Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, como quesito parcial à obtenção do título de Mestre em História. Curitiba, 2006.
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