A Câmara e a escravidão: registros históricos da injustiça
Gravura feita por João Mulato, de 1817, retrata escravos carregando a sinhazinha e uma criança à missa, em Curitiba. A obra integra o acervo do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná (IHGPR). (Reprodução – Foto: Chico Camargo/CMC)
A Câmara Municipal de Curitiba recebeu, em 1746, a ordem real para fabricar um carimbo com a letra “F” que marcaria com ferro em brasas os escravos fugidos e seria guardado na arca da Casa. O alvará em forma de lei de D. João V foi uma resposta aos “insultos” cometidos no Brasil pelos chamados calhambolas, que se refugiavam nos quilombos.
“Preciso acudir com remédios que evitem esta desordem: hei por bem que a todos os negros que forem achados em Quilombos, estando nelles voluntariamente, se lhes ponha com fogo hua marca em hua espádua (região posterior do ombro) com a letra ‘F’”, diz o documento, registrado nos livros da Câmara de Curitiba no dia 7 de novembro de 1746. Se o escravo já tivesse a marca, a determinação antes de levá-lo para a cadeia era para que lhe cortassem uma orelha “por simples mandado do juiz de fora ou ordinário da terra ou do ouvidor da Comarca, sem processo algum e só pella notoriedade do facto”.
Além da fabricação e armazenamento do carimbo, a Câmara recebeu a incumbência de nomear capitães-do-mato para a caça aos calhambolas (definidos como “aquillombados e vadios”), com a ajuda de negros, carijós ou bastardos. Se o escravo resistisse, a ordem real era clara: atirar e matar, sem o mínimo receio. Ao transcrever o registro do alvará em forma de lei à Câmara, o então diretor do Arquivo Municipal de Curitiba, Francisco Negrão, registrou, em 1924: “O negro não pertencia a especie humana: era animal”.
“A legislação a que a elle se applicava, era toda especial. Vemos se lhe applicar ferro em braza sobre as espáduas e cortar-se-lhe as orelhas, como se faz com o gado vaccum nas fazendas de criação. Até perante a religião havia distinção. Os seus nascimentos, cazamentos e obitos eram registrados nas Igrejas em livros aparte. Não se queria manchar o sangue azul dos brancos, pondo-os em promiscuidade com esses animais — que fizeram a grandeza economica da Patria”, completou Negrão.
Na sessão de 18 de março de 1780, o presidente da Câmara de Curitiba, juiz Francisco Luiz de Oliveira, alertou aos “negros e negras fugidas aquilombandoçe” nos arredores da vila, em partes vizinhas a fazendas de gado, causando prejuízos aos donos das mesmas. Segundo ele, os calhambolas roubavam os fazendeiros, trazendo graves prejuízos.
“Parecia util para o bem comum ouveçe de se nomearem capitains do mato por esta Camera q´nas paragens remotas podecem e foçem obrigados aprenderem os negros fogidos e mais delinquentes que ouverem”, disse o presidente. Oliveira defendeu a nomeação de quatro capitães-do-mato para Curitiba, dois para a Freguesia de São José, um para a Freguesia de Iapó, um para a Freguesia de Santo Antônio e outros dois para o “continente do Itambe e do Tamandua”.
Os calhambolas apreendidos, determinou o presidente da Casa, deveriam ser enviados à cadeia da vila. Como recompensa, o oficial receberia o prêmio de três mil réis. Localizam-se, nos boletins do Arquivo Municipal de Curitiba, atos de nomeação de capitães-do-mato. Na sessão de 25 de janeiro de 1800, por exemplo, a Câmara proveu ao cargo Joaquim Correa, para cuidar da vila, e Valentim Luiz, para as regiões do Barigui e Campo Magro.
Apesar das providências, a mão de obra cativa em Curitiba era reduzida, segundo Maria de Boni, que estudou a população da vila. Ela avaliou a presença escrava na cidade, na segunda metade do século 18, como “pequena e pouco significativa”, em meio ao viver basicamente agrário. Segundo a pesquisadora, 16,2% dos domicílios curitibanos, em 1776, contavam com escravos em sua estrutura; em 1785, a proporção subiu para 22,9 %.
Nos documentos dos séculos 18 e 19, há outros registros de castigos aos cativos. Primeiro jornal paranaense, “O Dezenove de Dezembro” trouxe, na edição do dia 7 de novembro de 1855, na seção “Júri”, o resultado do julgamento do “réu africano Manoel”, escravo dos herdeiros de Francisco Ayres de Araujo. Acusado de ferir Serafim Ferreira Moreira, causando sua morte, ele foi condenado a 150 açoites e a carregar um ferro no pescoço durante um ano. Seus senhores precisariam pagar as custas processuais.
Ofícios preservados no acervo do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná (IHGPR) autorizam punições a escravos. Por uma “dezordem”, um negro foi condenado a 50 açoites diários, ao longo de cinco dias, e uma quinzena, depois disso, na prisão, por meio de correspondência enviada em 27 de abril de 1780. Pouco mais de um ano depois, o “mulato que insultou o filho do alferes Bento Lopes” recebeu a pena de 500 açoites. As ordens partiram do capitão-general Martim Lopes Lobo de Saldanha, governador da Província de São Paulo entre 1775 e 1782.
Já o Museu Paranaense expõe instrumentos de tortura aos escravos. Um deles é o tronco de madeira, no qual a pessoa era presa pelos tornozelos e pulsos, em pé. No viramundo, os membros também eram presos, mas com as pernas geralmente dobradas. O acervo da instituição ainda possui a corrente com gargalheira e a algema para pés.
Mercadorias
O capitão-general Saldanha enviou, em 1º de março de 1779, correspondência ao capitão de Curitiba Miguel Ribeiro Ribas para agradecer pela encomenda de duas “mulatinhas”. “Eu me obrigo infinitamente do favor”, escreveu. No jornal “O Dezenove de Dezembro”, já na segunda metade do século 19, os escravos eram comercializados na seção de anúncios.
“Vende-se, na rua do Fogo (atual rua São Francisco) n. 17, um escravo de naçao, de 22 a 24 annos de idade, em vicio algum; serve muito bem para engenhos de erva”, dizia anúncio publicado em 1º de abril de 1854. No dia 20 de agosto de 1873, mesmo com a aproximação da abolição da escravatura (realizada em 13 de maio de 1888, com a Lei Áurea), o jornal estampou: “Quem pretender comprar um escravo vistoso de trinta e tantos annos e por preço commodo, dirija-se a esta typographia que se dirá quem tem”.
A seção também oferecia recompensa pela devolução de escravos. “A Francisco de Paula Guimarães, de Curiiyba, fugio uma escrava creoula, com os seguintes signaes: bem preta, de estatura ordinária, cara redonda, olhos grandes, boa dentadura e dentes aguçados, maviosa e affectada, mãos grandes como de homem que trabalha com machado, tem as munhecas grossas e os dedos curtos, um pequeno signal como de queimadura sobre as costas, chama-se Amancia. A quem a trouxer, além de pagar-se as despezas, se dará uma gratificação”, afirmava o anúncio, publicado abaixo de uma propaganda do Hotel Paranaense.
Atas da Câmara de Curitiba corroboram o tratamento dos escravos como mercadoria. Na sessão de 18 de março de 1743, o juiz ordinário, três vereadores e o procurador “fizeram um acordum em mandar por em prasa (vender) hum escravo por nome Pedro”. Ele havia sido penhorado pelo dono, Manoel Martins Balença, por dívidas não especificadas.
Os escravos também foram tema dos provimentos de Curitiba. Em 1721, o ouvidor Raphael Pires Pardinho tratou do tema nos “artigos” 119 e 120 (no 121, normatizou o gado perdido). O documento obrigava a entrega de negros fugidos ao juiz ordinário da Câmara Municipal em até 15 dias. Passado o prazo, a pessoa seria punida como ladra e teria que pagar indenização ao dono do cativo.
Em 1800, os provimentos do ouvidor João Baptista Dosguimarãens Peixoto ordenavam ao juiz ordinário prender “todos os negros e mulatos cativos de outros districtos que não apresentarem passaporte da pulicia, remetendo-os logo para a cadeia da cabeça da comarca”. Em 1804, ao tratar dos inventários, o ouvidor Antonio de Carvalho Fontes Henrique Pereira alertou que as divisões de escravos e gado deveriam ser igualitárias entre os herdeiros.
Costumes
No "Livro dos 300 Anos da Câmara Municipal de Curitiba", há diversos registros da regulação dos costumes e a preocupação com os bailes chamados fandangos, em especial os frequentados por escravos. A primeira proibição ocorreu em 1792. “Aos olhos dos vereadores e autoridades coloniais, o fandango se apresentava como expressão de lascívia e como tal era moralmente condenável”, aponta a obra.
Em 1807, foi determinada a pena de 50 açoites e 30 dias de cadeia ao escravo que participasse de um fandango. “Se passou um Edital para se evitarem os fandangos e principalmente nos que costumam entrar os Escravos cativos na qual se declarou a pena aos mesmos cinquenta açoites no Pelourinho, e trinta dias de cadeia, e seis mil réis de condenação aos que dessem casas para esse fim”, registram os documentos da Câmara de Curitiba.
Nas posturas de 1829, foram utilizadas palavras pesadas contra os “batuques”. “Tendo sido sem proveito todas as providências policiais até agora dadas, para se extirparem os batuques, que sem mais razão que a corrupção dos costumes, se têm arraigado neste Povo, e que dão azo à perpetração de muitos delitos que resultam da promiscuidade de ambos os sexos da classe imoral de escravos, e libertos, que não fazem tais ajuntamentos senão para dar pasto à devassidão e à desordem da crápula, com ofensa manifesta da moral pública, e tranquilidade dos Povos”, avaliou a Câmara. As regras para os fandangos só começaram a ser afrouxadas na década de 1860.
O preconceito era evidente na sociedade curitibana. No dia 8 de abril de 1729, os oficiais da Câmara Municipal de Curitiba receberam uma petição do ex-escrivão Thomé Pacheco, que questionava por que havia sido retirado do cargo. Dentre outras justificativas, os oficiais registraram em ata um dos motivos: o homem era mulato.
Em 1829, destaca “O Livro dos 300 Anos”, a Câmara Municipal de Curitiba teve acalorados debates sobre penas diferenciadas aos cativos. Por fim, decidiram: “enquanto ao homem livre caberiam penas de prisão ou multas, aos escravos, pelas mesmas infrações, estaria reservado o chicote”. Foi o caso da norma que vedava “as lavagens de qualquer natureza que sejam nas fontes de beber de uso público”.
A punição era de multa, mas, se o infrator fosse um cativo cujo senhor não a pagasse, a punição era de 25 açoites no pelourinho da cidade. A obra completa que, no decorrer do século 19, assistiu-se ao progressivo abrandamento das penas, que da chibata passam à palmatória e da palmatória à prisão, até se igualarem.
A palmatória foi determinada em 1861, por exemplo, ao escravo que andasse pelas ruas depois do toque de silêncio sem um bilhete de seu senhor que o justificasse. Nesse período, conforme “O Livro dos 300 Anos”, houve a proliferação de normas para regular as atividades dos escravos.
Foi proibida a venda de armas e munição a eles e também seria punido o liberto que permitisse seu ajuntamento. “Ou seja, à medida que se aproximava o fim do escravismo, multiplicavam-se os dispositivos legais que procuravam regulamentar a participação da população cativa na trama social”, explica o livro.
Dívida histórica
Como forma de reconhecimento à contribuição dos negros para o desenvolvimento da cidade e para reforçar a luta contra o preconceito, no dia 27 de novembro de 2012 foi aprovada na Câmara de Curitiba a lei que cria o feriado municipal do Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro (norma municipal 14.224/2013).
A matéria foi encaminhada ao Executivo para sanção, mas retornou sem o posicionamento do prefeito. Em janeiro de 2013, o presidente recém-assumido, Paulo Salamuni (PV), então promulgou a lei. “Essa mesma Câmara Municipal que aprovou o feriado do Dia da Consciência Negra há pouco tempo discriminava as pessoas pela cor: multava os brancos e açoitava os negros. Este feriado é o começo da reparação de uma dívida histórica, é importante que a instituição reconheça as injustiças que promoveu no passado e defina claramente seu papel atual de promotora dos direitos humanos”, justifica o vereador.
No entanto, uma decisão do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), do dia 15 de setembro de 2013, mantém o feriado suspenso, por conta de um questionamento feito pela Associação Comercial do Paraná e pelo Sinduscon/PR (Sindicato da Indústria da Construção Civil do Paraná).
Único vereador afrodescendente desta legislatura, Mestre Pop (PSC) acredita que o racismo possa diminuir por meio de ações educativas e judiciais, mas que nunca vai acabar. “O preconceito contra afrodescendentes existe e é cultural. Vem de berço. O racismo é uma pobreza de espírito”, afirma o parlamentar.
* As citações de atas e notícias, entre aspas, são reproduções fieis dos documentos pesquisados. Por isso, a grafia original não foi modificada.
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Referências Bibliográficas:
Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo. Volumes 58, 66, 81, 82 e 83. 1942. Tipografia do Globo, São Paulo (SP). Disponíveis no acervo do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná (IHGPR).
BONI, M. I. M. de. A população da vila de Curitiba segundo as listas nominativas de habitantes. 1765-1785. Curitiba, 1974. Dissertação de mestrado.
Jornal O Dezenove de Dezembro. Edições de 1º de abril de 1854 (venda de escravo de nação), 16 de setembro de 1854 (fuga de escrava), 7 de novembro de 1855 (açoites ao escravo Manoel) e 20 de agosto de 1873 (venda de escravo vistoso). Disponível em: http://hemerotecadigital.bn.br/
Boletins do Archivo Municipal de Curytiba. Volumes 1, 11, 14, 16, 23, 31, 36 e 37. Disponíveis em:
http://www.arquivopublico.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=98
Livro dos 300 Anos da Câmara Municipal de Curitiba. Março de 1993. Páginas 23 e 33-36. Disponível em: http://www.cmc.pr.gov.br/down/livro_300anos.pdf
Reprodução do texto autorizada mediante citação da Câmara Municipal de Curitiba