“Racismo impede tombamento de terreiro”, dizem povos do Axé na CMC

por João Cândido Martins | Revisão: Alex Gruba — publicado 02/12/2024 11h20, última modificação 02/12/2024 11h22
Litígio entre a Prefeitura de Curitiba e o Terreiro Cabana Pai Tomé iniciou em 2005. Templo pleiteia tombamento, mas a prefeitura entende que se trata de uma área de preservação ambiental.
“Racismo impede tombamento de terreiro”, dizem povos do Axé na CMC

Na última sexta-feira (29), a Câmara Municipal de Curitiba promoveu uma audiência pública para debater o Reconhecimento e a Valorização dos Espaços Religiosos de Matriz Africana. (Fotos: Claudio Sehnem/CMC)

Nesta sexta-feira (29), a Câmara Municipal de Curitiba (CMC) promoveu uma audiência pública sobre o tema O Reconhecimento e a Valorização dos Espaços Religiosos de Matriz Africana. A iniciativa do evento foi da vereadora Giorgia Prates – Mandata Preta (PT). Desde 2005, a prefeitura reivindica o imóvel sede do terreiro Cabana Pai Tomé e Mãe Rosária, localizado no bairro Abranches.

Além da vereadora Giorgia Prates, a mesa foi composta por: Fátima Aparecida Rodrigues, filha de Feliciano Rodrigues (falecido em agosto de 2023) e Tereza Rosa de Oliveira, o Pai Tomé e a Mãe Rosária, fundadores do terreiro; Fabiana Moro Martins, superintendente estadual do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan); Gabriel Paris, diretor de Patrimônio Cultural, representando a Fundação Cultural de Curitiba (FCC); Thiago Hoshino, professor de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro do Fórum Paranaense de Religiões de Matriz Africana e da Rede Brasileira de Religiões Afrobrasileiras; e Michele Rodrigues, neta de Feliciano Rodrigues e Tereza Rosa de Oliveira.

Também estavam presentes: Ozanam Aparecido de Souza, antropólogo e promotor cultural da Câmara Técnica de Patrimônio Imaterial da Fundação Cultural de Curitiba (FCC); e Marcelo Sutil, coordenador de Pesquisa Histórica da FCC.

  

Para vereadora, falta sensibilidade com as religiões de matriz afro

Giorgia Prates agradeceu a presença de todos e destacou que seu mandato enfatiza as pautas do povo negro para que sejam discutidas na Câmara de Curitiba. “A finalidade dessa audiência é o esclarecimento dos requisitos necessários para a regularização dos terreiros e dos espaços religiosos de matriz africana. Houve avanços, mas devemos continuar na luta pelo reconhecimento dos nossos direitos”, disse.

De acordo com a vereadora, a prefeitura não mostra sensibilidade para entender valores como a ancestralidade, que permeiam a luta negra como um todo e, em particular, a luta das religiões de matriz afro. Giorgia Prates disse que não pretende generalizar de forma negativa a atuação dos servidores e ressaltou que há agentes públicos que levam em consideração as características e especificidades dos cultos de matriz africana, mas que também há muita indisposição e falta de vontade política.

Ela lembrou que é autora do projeto de lei que declara as religiões de matriz africana como Patrimônio Cultural Imaterial do Município de Curitiba (005.00221.2023). “Este projeto estava na lista de projetos de interesse do povo negro que foi sugerida pela Mesa Executiva da Câmara, para que eles pudessem ser aprovados este ano, mas a verdade é que nenhum deles chegou a vir pro plenário”, disse a vereadora.

Questão da Cabana Pai Tomé foi judicializada em 2005

Em 30 de setembro deste ano, Giorgia encaminhou à prefeitura um requerimento de pedido de informações sobre a regularização fundiária do terreno que abriga o terreiro Cabana Pai Tomé, localizado na rodovia Curitiba-Rio Branco, no bairro Abranches. Em resposta, a prefeitura apresentou dois ofícios encaminhados respectivamente pela Procuradoria do Município e pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMMA). No primeiro, a Procuradoria esclareceu que a ação reivindicatória movida pela prefeitura teve início em março de 2005. A sentença, prolatada em julho de 2008 e com trânsito em julgado em abril 2010, foi favorável às pretensões da prefeitura.

Em maio de 2020, a Fundação Cultural Palmares (FCP) postulou o encaminhamento do processo à Justiça Federal e ele passou a tramitar na 11ª Vara Federal. De acordo com a juíza conciliadora, o cumprimento da sentença da ação reivindicatória depende da conclusão do processo de tombamento. Essa conclusão, de acordo com o Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de Curitiba, depende da decisão final da ação reivindicatória. Em 4 de novembro, o Conselho solicitou 120 dias para se pronunciar sobre o registro de lugar de patrimônio imaterial.

O segundo ofício encaminhado à Câmara pela prefeitura foi elaborado pela Secretaria do Meio Ambiente, e nele consta que no local onde está instalado o terreiro há presença de vegetação nativa, seja na forma isolada bem como em remanescente florestal. Além disso, conforme o documento, o imóvel é atingido por área de preservação permanente (APP) em função da presença de córrego ao fundo do imóvel, fato que impediria a regularização fundiária.

Cabana Pai Tomé é um espaço de acolhimento desde 1986

Representando o terreiro Cabana Pai Tomé, Fátima Rodrigues comentou que a luta pela preservação do espaço teve início antes mesmo da proposição da ação reivindicatória pela prefeitura em 2005. “Desde 1996, querem nos despejar. Somos uma família lá, minha mãe, irmãs, sobrinhas e outras pessoas. É um espaço de acolhimento espiritual e ajudamos também pessoas em necessidade desde 1986. Nunca incomodamos ninguém. Meu pai lutou bastante e, agora, a luta cabe a nós”, afirmou ela.

Michele, neta de Feliciano e de Teresa, reforçou o fato de que no terreiro habita uma família e o lugar está aberto a pessoas que buscam acolhimento. “O Iphan tem nos ajudado para que se mantenha a continuidade do trabalho e a preservação de práticas e saberes que ali se desenvolvem há mais de 30 anos”, afirmou.

“Devemos falar sobre o racismo religioso contra pessoas de terreiro”

Para Baba Fábio Maciel, do Fórum Paranaense de Religiões de Matrizes Africanas (FPRMA), devemos falar sobre pessoas de terreiro que sofrem racismo religioso. “É uma discussão necessária e urgente. Como participante do Fórum Paranaense, tenho aprendido muito. A gente conhece os assuntos do nosso Sagrado, mas acaba também aprendendo que existem os aspectos jurídicos patrimoniais, ambientais”, disse.

Maciel lembrou do processo referente às árvores gameleiras (Ìrókòs) situadas na Praça Tiradentes. “Conseguimos o registro patrimonial dos Ìrókòs e isso representou um passo importante para falar de educação patrimonial nos terreiros e pensar em formas de proteção desses espaços”, afirmou. Ele disse ainda que nos debates do Fórum teve a percepção de que alguns integrantes temem que o processo dos Ìrókòs multiplique a proposição de novas demandas.

“E se surgirem novas demandas, qual o problema? indagou Maciel. De acordo com ele, no último dia 17, um terreiro em Campina Grande do Sul, no meio de uma área rural, foi destruído por um incêndio. “Não houve registro em vídeo, mas aquele era um espaço sagrado de acolhimento e valorização de pessoas que agora virou cinzas. Esses incêndios já aconteceram dentro de Curitiba, e até apedrejamento de terreiro já foi registrado, como foi o caso do terreiro Pai Maneco, na Boa Vista”, lembrou.

Outro tema trazido por Maciel foi a isenção de IPTU para terreiros em Curitiba. “Desconheço terreiro em Curitiba que tenha isenção de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU). Mas eles são templos religiosos como quaisquer outros e devem ser isentos, como prevê a Constituição Brasileira aprovada em 1988. Por que a prefeitura burocratiza o cumprimento de uma lei maior?”, indagou Baba Fábio Maciel, que encerrou sua fala mencionando que o valor do IPTU de alguns terreiros (que sobrevivem de doações) chega a R$3 mil por ano.

Mestre Candieiro: “Toda luta preta é coletiva. Ninguém faz nada sozinho”

Adegmar José da Silva, Mestre Candieiro, idealizador e presidente fundador do Centro Cultural Humaitá e ex-membro do Conselho Municipal de Política Étnico-racial de Curitiba (Comper) explicou sua relação com a questão do terreiro Cabana Pai Tomé. Ele lembrou que foi conselheiro nacional de Cultura e de Promoção da Igualdade Racial e assessor de Promoção da Igualdade Racial da Prefeitura de Curitiba. “Criamos o Fórum Municipal das Religiões de Matriz Africana e lembro que, entre 2017 e 2018, a violência contra as religiões de matriz africana estava acirrada e nos uniu. Toda luta preta é coletiva, ninguém faz nada sozinho”, afirmou Candieiro.

Ele disse que ao constatar a situação da Cabana Pai Tomé, ficou claro que seria necessário criar uma estratégia para enfrentar o racismo institucional. “Não foi fácil e custou muito caro. Tentei muitas articulações. A prefeitura reivindicou o espaço e eu, na posição de integrante da prefeitura, pedi o tombamento, o que criou o imbróglio e uma contradição entre minha posição de assessor da prefeitura e a defesa da Cabana com base na lei 12.288/2010, que é o Estatuto da Igualdade Racial”, disse Candieiro.

“Trouxemos a Fundação Palmares para essa luta. Gerações estão naquele espaço há décadas. Eu me pergunto se a Fundação Cultural de Curitiba sabe que tem um Ìrókò plantado lá em frente ao terreiro”, questionou. Ele revelou que teve a oportunidade de conversar com o fundador do espaço, Feliciano Rodrigues. “Foi uma experiência muito forte, para mim, conversar com Feliciano. Percebi que a luta não era só dele, mas de todos nós, de todos os terreiros que estavam sendo atacados. A resistência da Cabana Pai Tomé já começa no fato de que o terreiro é localizado à rua Diogo Pinto de Azevedo Portugal, notório escravocrata. O local onde está o terreiro tem ancestralidade quilombola”, frisou Mestre Candieiro.

“Racismo: essa é a palavra que ninguém quer pronunciar”

Para Thiago Hoshino, professor de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro do Fórum Paranaense de Religiões de Matriz Africana e da Rede Brasileira de Religiões Afrobrasileiras, racismo é a palavra que ninguém quer pronunciar e que sintetiza, segundo ele, a situação do terreiro Cabana Pai Tomé. “É isso que está acontecendo nesse caso e em tantos outros.

Nas primeiras conversas com Feliciano Rodrigues, fundador do terreiro, em 2019, ele relatou que um vizinho racista acionou o Ministério Público, que transformou o racismo religioso em questão ambiental. O inquérito foi encaminhado ao município de Curitiba que entrou com uma ação reivindicatória. A área nunca havia sido pleiteada. Essa ação foi só uma vestimenta usada pelo racismo”, afirmou o professor.

Apenas 12 terreiros são tombados no Brasil

Fabiana Moro Martins, superintendente estadual do Iphan, explicou o papel da entidade no processo de reconhecimento das religiões de matriz africana como patrimônios imateriais. De acordo com ela, quando a preservação patrimonial foi adotada no Brasil, em 1937, a preocupação era exclusivamente arquitetônica, mas a Constituição de 1988 previu a preservação patrimonial de culturas e saberes populares (patrimônios imateriais).

“No caso dos terreiros, cabem os dois aspectos: o espaço físico (a área e a construção) como também práticas e conhecimentos não só referentes à religiosidade, como também ao cultivo de ervas medicinais, relação com a vegetação, cânticos, danças, etc”, disse ela. Fabiana Moro revelou que o Iphan tombou, até o momento, 12 terreiros, sendo 10 deles na Bahia, 1 no Maranhão e 1 em Pernambuco. Todos vinculados ao Candomblé, mas há pedidos para o tombamento de terreiros de Umbanda em São Paulo e no Rio Grande do Sul.

Ela citou os critérios usados pelo Iphan para avaliar a conveniência da preservação via tombamento, registro ou inclusão de um templo de religião de matriz africana: 1) antiguidade; 2) continuidade histórica; 3) representatividade reconhecida por pares; 4) excepcionalidade (uma singularidade que o torne diferente); 5) ser um espaço de resistência; 6) ser um espaço de difusão de conhecimento e manutenção de práticas que se quer reconhecer; 7) presença de lideranças destacadas; 8) e ser comprovadamente fiel a uma determinada tradição afro ou adotar, também comprovadamente, sincretismo de tendências.

Fabiana concluiu mencionando a importância que o Iphan confere, nos casos de processos de patrimonialização, à apresentação de laudos antropológicos, arquitetônicos e etnobotânicos.

Patrimônio imaterial surgiu em 1988, mas foi adotado apenas em 2000

Gabriel Paris, diretor de Patrimônio Cultural, esclareceu que, neste processo de tombamento, a FCC é apenas uma entre as entidades que formam o Conselho do Patrimônio Municipal (lei municipal 14.794/2016). Ele ressaltou que há um processo de aprendizagem de aplicação da lei, principalmente quanto ao patrimônio imaterial, que é um conceito presente na constituição de 1988, mas que só foi posto em prática a partir da década de 2000.

Paris explicou as diferenças entre os modelos de preservação: tombamento, inventário e o registro (modalidade que envolve a participação da população). De acordo com ele, o Conselho é formado por duas câmaras técnicas: uma voltada ao patrimônio imaterial (CPDA) e outra ao material (CAPC). O projeto tramita entre as Câmaras e a plenária até que recebe o parecer final de um relator. “Se aprovado, começa outra fase, que é a da salvaguarda”, esclareceu Paris.

Reformulação do Conselho do Patrimônio Municipal

Brenda Santos, representante do coletivo Lugares de Axé, lembrou da pesquisa sobre as primeiras Casas de Axé de Curitiba e Região Metropolitana, projeto capitaneado pela antropóloga Patrícia Martins (que foi técnica do Iphan) e teve financiamento da própria Prefeitura de Curitiba. “Essa iniciativa se transformou e hoje a gente se considera um coletivo de pesquisa que busca gerar documentos que sejam úteis às comunidades de terreiro no sentido de possibilitar o reconhecimento cultural”, disse.

Para ela, alguns integrantes do Conselho do Patrimônio Municipal são despreparados para lidar com a temática do patrimônio imaterial. “A cidade desconhece a importância do Conselho. É necessária uma reformulação que permita participação popular mais ativa e oxigenação das ideias e propostas. As reuniões sequer são gravadas ou tornadas públicas”, afirmou a representante do coletivo Lugares de Axé.

“Logo depois da explanação no Conselho sobre a questão do terreiro Cabana Pai Tomé, um dos técnicos usou o termo desterritorialização (tentando fazer referência ao pensamento do filósofo Gilles Deleuze), como se o templo de matriz africana pudesse mudar de espaço e deixar pra trás suas raízes e sua ancestralidade. Outro conselheiro disse que a gente estava propondo a patrimonialização como um ‘jeitinho brasileiro’ de lidar com a questão da ação reivindicatória da prefeitura”, comentou Brenda.

De acordo com ela, tais fatos reforçam a constatação de que a briga não é somente pela preservação da Cabana Pai Tomé, mas também por uma representação qualificada da população (não só a negra) nos Conselhos Municipais. “Por que que o Iphan não está representado no Conselho? O debate sobre o tema aparentemente está mais evoluído entre pessoas e entidades que não integram o Conselho do que entre aqueles que ocupam vagas no Conselho, visando proteger de forma exclusiva as paredes coloniais e os exemplares da arquitetura europeia espalhados pela cidade”, concluiu Brenda Santos.

Defensoria Pública Estadual se compromete a combater o racismo

Também participou da audiência pública o representante do Núcleo de Promoção da Igualdade Étnico-Racial (Nupier) da Defensoria Pública do Estado do Paraná (DPE-PR), Lucas Rodrigues do Monte Silva. Ele esclareceu que, como o processo foi encaminhado para a esfera federal, a Defensoria Pública do Estado não pode se envolver, mas o órgão tem as portas abertas para as necessidades do povo negro e o combate ao racismo e às violações de direitos dos negros.

Veja imagens da audiência pública no Flickr da CMC

 

29/11/2024 - Audiência pública: O reconhecimento e valorização dos espaços religiosos de matriz