“A tarifa de ônibus impede as pessoas de circularem na cidade”, diz especialista
Segundo Lafaiete Neves, o atual modelo de cálculo da tarifa "destrói o transporte coletivo". (Foto: Carlos Costa/CMC)
“A tarifa hoje é impeditiva. Ela impede as pessoas de circularem na cidade. […] A tarifa segrega, porque tem que ter renda. Este fator tem que ser eliminado para que as pessoas possam fluir pela cidade”, disse Lafaiete Neves à Comissão Especial Para Discutir o Novo Contrato do Transporte Coletivo - Tarifa Zero, em reunião promovida nesta sexta-feira (11). Ao colegiado especial da Câmara Municipal de Curitiba (CMC), o convidado defendeu ser possível a implantação da tarifa zero no sistema da capital paranaense, sugerindo inclusive possíveis fontes de financiamento.
Estudioso do sistema de transporte público há 40 anos, Lafaiete Neves é membro da Plenária Popular do Transporte Coletivo e professor aposentado da UFPR. Doutor em Desenvolvimento Econômico pela UFPR, ele também é conselheiro titular do Concitiba (Conselho da Cidade de Curitiba) – órgão colegiado municipal de política urbana, cuja finalidade é a gestão democrática da cidade e que tem atuação em quatro áreas, entre elas a mobilidade. Sua participação na comissão especial foi a convite de Giorgia Prates – Mandata Preta (PT).
Ao colegiado, o especialista afirmou que não dá para dissociar a tarifa do contrato que está em vigor e que a crise do sistema enfrenta nos últimos anos, com a perda de usuários, foi provocada pela licitação de 2009 – o novo contrato entrou em vigor em 2010 e tem a duração de 15 anos. Para comprovar sua análise, Neves apresentou dados da Urbs, compilados pelo Dieese, que apontam a redução do número de passageiros, ano a ano, desde 2011.
Em dezembro de 2015, o custo por km era R$ 7,18; e em março de 2023, o custo era R$ 12,08. No mesmo período, a tarifa social passou de R$ 3,30 para R$ 6,00; e a técnica, de R$ 3,27 para R$ 7,29. “A inflação do período foi 47,4%, enquanto que o custo do sistema aumentou em mais de 100%”, destacou Neves. “Não existia no Brasil a tarifa técnica. Por que não tem, na [conta de] água, duas tarifas? Por que não tem, [na taxa do] lixo, duas tarifas? Por que inventaram duas tarifas para o transporte?”, indagou o professor.
Na sequência, Lafaiete Neves respondeu que a tarifa técnica existe para “cobrir o rombo”. “Ela está no contrato para garantir que, se tiver rombo, alguém paga: o ente municipal contratante vai bancar. O número de passageiros, isso pouco importa, a tarifa técnica garante. Porque se tivermos [passageiros], aumentamos. Mas não podemos mexer na nossa taxa de lucro”, complementou.
Indagado por Rodrigo Reis (União) se a queda de passageiros comprometeria o lucro das empresas, o professor explicou que pela lógica era o que deveria acontecer, mas em Curitiba, ao passo que o número de usuários diminui, a tarifa técnica tem subido. E isso se dá porque Curitiba tem um “modelo de tarifa que destrói o modelo de transporte coletivo”. “É o que inviabiliza o negócio, porque a tendência é aumentar cada vez mais o subsídio”, disse o convidado.
Divergências sobre o IPK
Na opinião do vice-relator da Comissão Especial do Transporte, Dalton Borba (PDT), o IPK (índice de passageiros por quilômetro) – o resultado da divisão da demanda equivalente (pagantes do valor total da tarifa) pela quilometragem percorrida – é um fator que acaba “onerando demasiadamente o sistema e colocando o usuário como um custo”, funcionando como um mecanismo que garante que a concessionária não trabalhe “no vermelho, porque ela está sempre com seu custo garantido”. O subsídio da Prefeitura de Curitiba ao sistema de transporte coletivo foi dado sem processo administrativo prévio que justificasse a composição ou desequilíbrio econômico-financeiro do contrato.
“Segundo as regras do direito administrativo, nenhum tipo de recomposição do aspecto econômico-financeiro do contrato pode ser feito se não for precedido de um competente processo administrativo. E sem que houvesse isso, o prefeito destinou, numa pancada só, R$ 300 milhões, que foi inclusive autorizado pelo colegiado da Câmara Municipal. Este subsídio foi dado por conta do IPK: diminuiu sobremaneira o número de usuários [na pandemia], a empresa não pode funcionar, então o subsídio extra”, argumentou Borba.
Relator da comissão, Bruno Pessuti (Pode) discordou do colega sobre o IPK ser responsável pelo lucro dos empresários: “É uma afirmação um pouco responsável, porque o custo do transporte é por quilômetro rodado”. “Esse índice é apenas uma referência da quantidade de pessoas que estão dividindo o custo. Ele não é a solução definitiva para o transporte, ele não deveria existir. O IPK foi criado na intenção de que a quantidade de passageiros aumentasse, quando na verdade o inverso aconteceu. Basicamente o custo é o grande problema”, analisou o vereador.
Para o vereador, Curitiba precisa estudar outros sistemas de transporte coletivo do país, como o de São José dos Campos (SP), que tem contratos segmentados em diferentes tipos. Segundo Pessuti, a cidade paulista segmentou a compra dos ônibus através do aluguel em um contrato, a operação do sistema e a manutenção dos veículos. “No caso de São José dos Campos, a tarifa técnica não é tão elevada, porque o custo do sistema é diluído. Dos três contratos diferentes, apenas um impacta diretamente ao usuário”, analisou.
“O custo do ônibus é diretamente proporcional ao lucro do empresário. Na tarifa, o único lucro possível que existe é o custo do ônibus, então quanto maior o custo do ônibus, 1% ao mês sobre o capital investido, maior é o lucro da tarifa. Isso talvez não seja desejável, no sistema atual, porque a partir do momento em que você aluga o ônibus, não tem mais o ônibus como ativo, então automaticamente você vai retirar o lucro da operação, contabilmente falando”, complementou Bruno Pessuti.
Como custear a tarifa zero?
“Hoje, Curitiba, para manter o sistema, subsidia em R$ 250 milhões [por ano]. Se a tarifa zero fosse implantada, de onde viria os R$ 960 milhões que custeiam o sistema?”, perguntou Serginho do Posto (União), vice-presidente da Comissão Especial do Transporte. Como proposta de financiamento, o convidado sugeriu que a cidade invista, no sistema, a arrecadação com as multas do EstaR; a repactuação do contrato; e a destinação de emendas parlamentares – nos níveis federal, estadual e município – para financiar o custeio do sistema de transporte coletivo.
O especialista também defendeu a exclusão do IPK do cálculo da tarifa. Outra medida seria o uso do recurso do vale-transporte pago pelas empresas, a partir da criação de uma taxa de transporte coletivo, a ser paga pelas empresas, por trabalhador. Segundo o economista, se a taxa custar, por exemplo, R$ 100, Curitiba conseguiria arrecadar R$ 90 milhões por mês, cobrindo o custo do sistema, que atualmente é de R$ 84 milhões.
“Se Curitiba decidir pela tarifa zero, os empresários não vão pagar mais o vale-transporte, porque a tarifa é zero. O recolhimento [do vale transporte] vai direto para os cofres do município e contrata os ônibus por quilômetro rodado”, complementou. Atualmente, 82,25% do financiamento do sistema é pago com a tarifa social e 17,75% pago com subsídio da prefeitura.
“Essa engenharia política, econômica e contábil é necessária para que [a taria zero] não seja uma divagação, uma ideia, e, sim, que se torne uma política pública nos grandes urbanos”, disse o deputado estadual Goura (PDT), que acompanhou a reunião. Para o parlamentar, o novo edital de licitação de Curitiba tem que prever a possibilidade da tarifa zero. “Curitiba está completamente integrada com a RMC e as políticas públicas também devem ser integradas. Quem vai pagar a conta? As pessoas vão andar de ônibus, a economia vai circular e ser fortalecida”, emendou.
Outra medida que pode contribuir com a implantação da tarifa zero é a criação do Sistema Único de Mobilidade (SUM), semelhante ao SUS (Sistema Único de Saúde), para financiamento do sistema de transporte público de todo o país. “O SUM vai resolver um problema que nunca resolvemos em Curitiba, o controle social na tarifa. Nunca houve transparência. Nós não sabemos o custo real do transporte, não temos acesso às notas fiscais. O custo real não se sabe, é um mistério”, disse Lafaiete Neves.
“Se a comissão propuser a tarifa zero, ela está dando um salto importante. E isso vai acontecer. Se não passar aqui, lógico que as críticas serão muito grandes. E a tarifa zero é o que irá orientar as eleições de 2024. […] Está pegando [o movimento]. Pegou em 78 cidades, e sem regulamentação nenhuma. O Poder [Executivo] local está resolvendo a questão”, argumentou o economista. Além dele e do deputado estadual Goura, Professora Josete (PT), Giorgia Prates, Herivelto Oliveira (Cidadania) e Professor Euler (MDB) também se manifestaram na reunião.
A Comissão Especial do Transporte
Instalada em 18 de abril para discutir o novo contrato do transporte coletivo da cidade e a viabilidade da implementação da tarifa zero, a Comissão Especial do Transporte foi proposta em 2021 por meio de requerimento (051.00004.2021) aprovado por unanimidade pelo Legislativo no dia 03 de abril deste ano. A atual concessão do serviço público vence em 2025 e o grupo tem o prazo de 120 dias para elaborar um relatório que possa subsidiar a construção da nova licitação.
As reuniões têm servido para que os vereadores conheçam o funcionamento do sistema de transporte público da cidade e os detalhes do atual contrato. Visitas técnicas às garagens das empresas de ônibus, agendas com universidades e especialistas que estudam o sistema de Curitiba e viagens para conhecer os sistemas de transporte coletivo de outras cidades também estão no radar do colegiado.
Formada por oito parlamentares, o colegiado foi criado a partir da iniciativa de Herivelto Oliveira (Cidadania), eleito presidente do colegiado. Serginho do Posto (União) foi escolhido vice-presidente. A relatoria está com Bruno Pessuti (Pode) e a vice-relatoria com Dalton Borba (PDT). Também são membros os vereadores Giorgia Prates – Mandata Preta (PT), Jornalista Márcio Barros (PSD), Professor Euler (MDB) e Rodrigo Reis (União).
As reuniões do colegiado foram suspensas em julho, durante o recesso parlamentar, e caso o prazo de funcionamento da comissão especial não seja prorrogado, o parecer da Comissão Especial do Transporte deverá ser concluído até meados de setembro.
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