2004: gestão democrática no Plano Diretor de Curitiba - Parte III

por João Cândido Martins — publicado 11/11/2015 08h50, última modificação 20/05/2022 14h58
2004: gestão democrática no Plano Diretor de Curitiba - Parte III

A revisão do Plano Diretor de 1966 foi realizada em 2004, em conformidade com o que determinava o Estatuto da Cidade, lei federal de 2001. Na foto, vereadores Jorge Bernardi e Roseli Isidoro debatem mudança com o Ippuc. (Foto: Arquivo/CMC)

Bastante coisa aconteceu entre os planos diretores de 1966 e 2004 na cidade de Curitiba. Entre os anos 1990 e a primeira metade dos anos 2000, a capital do Paraná foi reconhecida como uma das cidades mais vanguardistas em termos de propostas urbanísticas em todo o mundo, e isso foi comprovado com o recebimento de prêmios internacionais como o “Annual Achievement Award for Promoting Global Energy Efficiency”, oferecido pelo Instituto Internacional de Conservação de Energia (sediado em Washington, D.C.), para o programa de transportes coletivos.

Outras premiações se seguiram: o prêmio Habitat oferecido pelo Centro das Nações Unidas para Assentamentos Humanos e o prêmio “Árvore da Vida”, conferido pela União Internacional para a Conservação da Natureza. Destaque também para o prêmio concedido em 1990 aos programas “Compra do lixo” e “Lixo que não é lixo”, pela ONU. Em 1992, a cidade recebeu a comenda Honra ao Mérito aos Prefeitos por ocasião da Rio-92. Além disso, durante a festa dos 300 anos da cidade em 1993, a revista Veja publicou uma matéria de capa com o título “A capital de um país viável”. No mesmo ano a revista Ecologia e Desenvolvimento dedicou uma edição inteira às inovações da cidade.

Diante deste cenário, os anos que antecederam a revisão do Plano Diretor em 2004 (norteada pelas mudanças propostas pelo Estatuto da Cidade) também foram marcados por legislações que visavam produzir mudanças na dinâmica da cidade (que já mostrava indícios de se tornar uma metrópole). Exemplos de leis dessa natureza são a reformulação dos setores estruturais, em fins dos anos 1990, e a reformulação da Lei de Zoneamento e Uso do Solo (lei municipal 9.800/2000).

Esta lei “lançava luz sobre um novo conceito de cidade, mais densa e desenvolvida economicamente. Esta nova cidade abria espaço para a construção civil, através de vários artifícios de incentivo, como o solo criado e maiores coeficientes de aproveitamento, e, junto a isto, determinava a criação do Plano Massa, que seria aplicado aos setores estruturais”, diz Vinícius Augusto Paludo em sua dissertação de conclusão do bacharelado em História publicada pela UFPR em 2015.

Ainda de acordo com o historiador, o Plano Massa (decreto 190/2000) tinha por objetivo oferecer “condições favoráveis às incorporadoras e construtoras para a construção de prédios de grande porte, com alto índice de aproveitamento dos terrenos e determinar a construção de galerias abertas, com quatro metros de largura e três metros e meio de altura, por toda a extensão das vias estruturais, intensificando o comércio ao longo das canaletas de transporte coletivo”.

Essa é a terceira reportagem sobre a história dos planos diretores de Curitiba, dentro do Projeto Nossa Memória, da Assessoria de Comunicação da Câmara Municipal de Curitiba. Ela segue a viagem pela história dos planos, iniciada no Plano Agache (1943) e sucedida pelo Plano Wilheim-IPPUC (1966), também conhecido como Plano Serete. Hoje a trajetória continua com dados a respeito da revisão do Plano de 1966 promovida no ano de 2004, por exigência do Estatuto da Cidade, legislação federal que entrou em vigor em 2001.

Estatuto da Cidade
O Estatuto da Cidade (lei federal 10.257/2001) instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, conjunto de 16 diretrizes que associadas aos artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 “servem para nortear Estados e Municípios naquilo que concerne ao ordenamento do território local e em favor do bem-estar dos habitantes, mediante normas básicas de ordem pública com interesse social, na escala das comunidades”, conforme explica estudo publicado pelo Câmara Municipal em associação a CAU, em 2014.

“Nos anos 90”, continua o estudo, “enquanto esse projeto de lei tramitava no Congresso Nacional e até sua promulgação definitiva em 2001, novos componentes do cenário brasileiro e outras variáveis, em escala mundial, alteraram a estrutura operacional e gerencial das cidades, tornando as novas disposições bem mais vulneráveis aos interesses da economia global”.

O Estatuto da Cidade foi o resultado de doze anos de discussão plenária e também no âmbito da sociedade civil organizada, por meio do Fórum Nacional de Reforma Urbana. A proposta inicial foi do então senador Pompeu de Souza, que sugeria o resgate e a adaptação de um anteprojeto do Executivo [do último ano do regime militar] que pretendia instituir a política urbana nacional.

“A aprovação do Estatuto da Cidade representou um avanço nas questões urbanas brasileiras, pois contempla instrumentos tributários, jurídicos, políticos e urbanísticos para que o município promova a gestão comprometida com o ambiente e a justiça social na cidade. Como Curitiba por meio do seu Plano Diretor utiliza, há muito tempo, grande parte dos instrumentos preconizados no Estatuto, passa a adotar parte das novas disposições. Para tanto e como determina a própria Lei Federal, devem ser debatidos os dispositivos que serão inseridos ao Plano Diretor vigente, regulamentando os mecanismos de aplicação. (...) O Estatuto da Cidade acrescenta às práticas de Curitiba uma postura compulsória para Regularizações Fundiárias, para canais de Gestão Democrática e para uma compatibilidade vertical: entre os planos e ações de âmbito local, metropolitano, estadual e federal”, diz estudo publicado pela Câmara em associação com a CAU.

Participação e debate
De acordo com a sinopse histórica encontrada no texto do “Plano Municipal de Regularização Fundiária em Áreas de Preservação Permanente”, ainda em 2001 tiveram início os estudos para adaptar o Plano Diretor de Curitiba (1965) ao Estatuto da Cidade (2001), “com a participação de técnicos em eventos promovidos por instituições federais e municipais, e de workshops e seminários para a apreciação dos diversos aspectos da nova legislação. Foram fixados objetivos e metas municipais durante a preparação da Agenda Municipal do Estatuto da Cidade, contemplando etapas para uma reflexão sobre os 35 anos de implantação do Plano Diretor local com participação do Conselho Consultivo do IPPUC – CONSECON (criado pela Lei 10.071/2000) com atribuição de participar na formulação, elaboração e acompanhamento da política municipal, com 24 membros, representantes da administração direta e indireta do Município, Câmara Municipal, órgãos estaduais, sociedade civil organizada, entidades de classe e universidades”.

Em 2002, três grupos de estudos foram formados por integrantes da administração e da sociedade civil. A partir deles foi constituído um Grupo Relator Multidisciplinar “que recomendou ajustes e adequações necessários nos instrumentos legais, segundo abordagens de técnica legislativa definidos por Termos de Referência Técnica”. Este grupo produziu as seguintes recomendações: “as adequações necessárias na legislação existente devem levar em conta tudo que é estabelecido no Estatuto da Cidade sem, no entanto, perder de vista as conquistas já alcançadas pelo Município”, esclarece o estudo publicado pela Câmara e pela CAU em 2014.

Na primeira metade de 2003 a prefeitura constituiu novos grupos de estudo com representantes das secretarias, autarquias e empresas do município. Eles produziram alguns pareceres técnicos que posteriormente foram disponibilizados à população via internet. Os documentos recomendavam: “delimitação das áreas onde poderão incidir induções urbanísticas, nos moldes de parcelamentos, edificações ou utilizações compulsórias; definição de critérios para enquadrar situações de subutilização em imóveis; delimitação de áreas onde poderá ser utilizado o Direito de Preempção; Delimitação de áreas receptoras, passíveis de acolher a outorga onerosa do direito de construir e eventuais alterações de ocupação e em usos do solo; definição de limites para os coeficientes de aproveitamento; elaboração do Plano de Transporte Urbano; elaboração do Plano de Desenvolvimentos Econômico e Social; estabelecimento da Política Habitacional do Município; e elaboração do Plano de Mobilidade Urbana.

Após 9 audiências públicas realizadas por meio de decreto (898/2003) que tiveram a participação de 1.463 pessoas [que propuseram 142 sugestões] e, realizados mais alguns ajustes técnicos, o projeto foi encaminhado à Câmara. O presidente da Comissão que avaliou o projeto em 2004 foi Felipe Braga Côrtes (PSDB), conforme lembrou o próprio vereador num dos encontros promovidos em 2014 pela Comissão de Urbanismo para discutir a atual revisão do Plano Diretor. “Eu era presidente da Comissão e fui o relator, naquele momento, daquele Plano Diretor. E já naquela oportunidade a participação da Câmara foi com mais de trinta e oito emendas, que foram discutidas”, frisou o vereador.

A Casa promoveu naquela ocasião mais duas audiências públicas para o debate do texto. Palestras e debates também foram promovidos na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, a pedido daquela universidade em conjunto com a Universidade Federal do Paraná. Também realizaram eventos dessa natureza o Centro Universitário Positivo, a Unicenp e a Universidade Tuiuti do Paraná, além da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. As contribuições apresentadas nas audiências públicas foram encaminhadas para os técnicos encarregados da preparação da proposta de adequação do Plano Diretor ao Estatuto da Cidade.

Entre elas, destaque para: “criação de Conselho Municipal de Desenvolvimento, reunindo representantes da sociedade civil e do poder público municipal; adoção de um estatuto único para a Região Metropolitana, com o objetivo de racionalizar e baratear a elaboração de projetos comuns – de habitação, saúde, educação, meio ambiente, recursos hídricos e o uso das estruturas e equipamentos existentes; estímulo à participação social de pequenas empresas, individualmente ou mediante associação com uma ou mais; elaboração de diretrizes para uso de água tratada, com substituições e reaproveitamento da água pluvial; e subsídios para manutenção de áreas verdes, como forma de impedir a ocupação urbana que prejudique o meio ambiente”, informa o texto da Câmara em parceria com a CAU.

“A questão da participação comunitária tem implicado não apenas a imposição de um caráter necessariamente democrático ao planejamento, mas também uma mudança na maneira de se trabalhar. Ampliam-se não apenas os agentes envolvidos no processo de planejamento, mas, igualmente, os temas de interesse. Geralmente, os planos diretores trabalhados em período anterior aos anos 1980 e 1990 reduziam suas análises a setoriais de uso do solo, saneamento, sistema viário, transporte, habitação, saúde e educação (esses dois últimos, somente em termos da espacialização da rede). Atualmente, além destes, o plano diretor se obriga a trabalhar com novos temas e, o que é importante, de forma integrada. Os novos temas de trabalho do planejador incluem a geração de renda em comunidades carentes e a violência, que atualmente fazem parte obrigatória do planejamento urbano”, afirmam Denis Alcides Rezende e Clóvis Ultramari no artigo “Plano diretor e planejamento estratégico municipal: introdução teórico-conceitual”, publicado em 2007.

Aprovação
Depois disso, o projeto foi encaminhado para votação na última sessão de 2004 e foi aprovado com 54 emendas, tornando-se (com a posterior aprovação do prefeito) a Lei Municipal 11.266/2004. “A abrangência do Plano Diretor como via de sustentação ao desenvolvimento planejado da cidade é consenso entre os vereadores que aprovaram o documento, visando estabelecer uma relação entre os desenvolvimentos econômico e social da cidade”, defende o estudo Câmara/CAU.

A revisão do plano destacava a adoção da gestão democrática como forma de relacionamento entre a administração e a população, tendo por fundamento a democracia participativa e a cidadania na busca da sustentabilidade urbana. “A participação direta da população é assegurada no Plano Diretor com a criação de instâncias de participação como: órgão colegiado municipal de política urbana; debates audiências e consultas públicas; Conferência municipal da cidade; iniciativas populares de projetos de lei, de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano sustentável; e criação de conselhos municipais distritais” diz a sinopse do Plano Municipal de Regularização Fundiária.

Além disso, o estudo Câmara/CAU complementa que “basicamente, foram incorporadas ao Plano Diretor de Curitiba algumas novidades institucionais, as quais dão nova formatação legislativa para algumas práticas anteriormente pouco ou até indevidamente regulamentadas. Na adequação do Plano Diretor, os instrumentos de política urbana detalhados na lei que acompanha este documento, são os seguintes: Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios; Direito de Preempção; Outorga Onerosa do Direito de Construir; Transferência do Direito de Construir; Operações Urbanas Consorciadas; Estudo de Impacto de Vizinhança; e Monitoramento e controle do Plano Diretor”.

Alfredo Vicente Trindade, superintendente de obras e serviços na Secretaria Municipal de Meio Ambiente falou sobre a revisão de 2004, durante a 2ª audiência pública sobre o Plano 2015 [realizada no dia 22 de maio de 2014 pela Comissão de Urbanismo sob a presidência do vereador Jonny Stica (PT)]. Trindade, que é engenheiro florestal lembrou que “o município (...) precisava fazer a revisão do Plano Diretor, incorporar esses novos instrumentos, manter tudo aquilo que era bom e que se perpetuou ao longo de tantos anos e avançar (...) E a revisão do Plano Diretor, que acabou se consagrando na nossa Lei Municipal 11.266/2004 tem ao longo do seu corpo várias citações nas áreas mais diversas que se confundem ou complementam a questão ambiental, alguns artigos específicos dele tratam disso. É interessante ver um detalhe, por exemplo, o crescimento da cidade em 1953 se dava de forma concêntrica, muito similar a algumas cidades da Europa, até pela questão da imigração que nós tivemos. Ao longo de tantos anos o crescimento era concentrado”.

“A proposta trazida pelo Plano Diretor de 65”, continua Trindade “era conduzir esse crescimento da cidade, através dos eixos estruturais, por meio do uso do solo, tendo o sistema viário como padrão. E essa nossa revisão de 2004 trouxe algumas linhas extras. Por exemplo, aqui nós temos a linha verde como um grande eixo de desenvolvimento, além da questão do setor estrutural. E a gente pode avaliar aqui, se vocês lembrarem do tripé original (integração física– zoneamento, transporte coletivo e sistema viário), ele continua existindo no Plano Diretor de 2004, mas agrega mais algumas questões como o desenvolvimento econômico, desenvolvimento social e o meio ambiente nas suas principais bases de desenvolvimento da cidade”.

Um exemplo de novidade na Revisão do Plano que foi possibilitada pelas diretrizes do Estatuto da Cidade é lembrado por Nilson Cesar Fraga e Ana Carolina Martins Gavriloff em artigo publicado pelo “Brazilian Geographical Journal”: a Operação Urbana Consorciada Linha Verde, cuja implantação foi iniciada em 2009. Localizada ao longo do eixo da antiga BR-116, rodovia federal inaugurada ainda na década de 60 e que atravessa 22 bairros no sentido norte-sul, foi relocada em 2002 para fora dos limites do município com a conclusão do projeto do Contorno Leste.


>>> Referências Bibliográficas
Fórum do Plano Diretor de Curitiba 2014 - Câmara Municipal de Curitiba e CAU - Relatório e propostas das audiências públicas – Relatório e propostas dos grupos de estudo – Acordo de Cooperação Técnica – revisão do Plano Diretor de Curitiba 2014 - 1ª Oficina do Grupo de Mensais | Economia Criativa e Cultura & Meio Ambiente e Sustentabilidade Relatório Técnico 01 | VOLUME I

Nilson Cesar Fraga Ana Carolina Martins Gavriloff. Instrumentos de Gestão Urbana e a Evolução da Ocupação em Curitiba: O Caso da Operação Urbana Consorciada Linha Verde. Brazilian Geographical Journal: Geosciences and Humanities research medium, Ituiutaba, v. 5, n. 1, p. 60-83, jan./jun. 2014.
http://www.seer.ufu.br/index.php/braziliangeojournal/article/view/22548

Oliveira, Márcio de. A trajetória do discurso ambiental em Curitiba (1960-2000). Revista de Sociologia e política, nº. 16: 97-106. UFPR, 2001.
http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n16/a06n16.pdf

Paludo. Vinícius Augusto. Legislação e planejamento urbano: uma análise histórica do decreto nº. 190/2000 do município de Curitiba. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de História (Licenciatura e Bacharelado) da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção de título de Graduado em História. Curitiba, 2015.
http://www.humanas.ufpr.br/portal/historia/files/2015/07/Monografia-Vinicius-Paludo.pdf

Rezende, Alcides Rezende; Ultramari, Clovis. Plano diretor e planejamento estratégico municipal: introdução teórico-conceitual. RAP. Rio de Janeiro, Março/Abril 2007
http://www.scielo.br/pdf/rap/v41n2/05.pdf