1889: A imprensa, a polícia e as
Curitiba tem suas lendas sobrenaturais, passadas de geração a geração, como a da loira fantasma - que na década de 1960 era contada, em especial, pelos taxistas da cidade. Mas outro caso, passado em 1889, de “almas do outro mundo” que seriam responsáveis por estranhos acontecimentos em uma casa e foram investigados pela polícia, ficaram esquecidos no tempo. A história se passou no Rio de Janeiro, capital do Brasil Império, e repercutiu por aqui. Foi destacada na primeira página de seguidas edições da Gazeta Paranaense, jornal do Partido Conservador, em meio a artigos contrários ao movimento pela Proclamação da República e outras notícias.
Sob o título “Almas do outro mundo”, as matérias foram publicadas na coluna “transcripção”, já que vinham de outro periódico, a Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro. A primeira delas saiu no dia 5 de junho de 1889: “Benzam-se, e quem souber rezar, que reze o Creio em Deus Padre de traz para diante, e de diante para traz. Quem não tiver coragem, pare aqui. (…) o caso é sério, muito sério, de arrepiar couro e cabello”.
O “theatro dos mysterios”, continuava, era a residência do comendador Cunha, antigo e respeitado comerciante de café, localizada na rua do Barão de Mesquita, número 4. Além dele, moravam ali a esposa e uma cozinheira, uma “preta velha” chamada Maria. A casa era descrita como “grande, assombrada, no centro de um terreno arborisado, isolada de todos os outros predios”.
Segundo o comendador, o imóvel era apedrejado por uma “mão occulta”. Logo depois vieram gargalhadas. “É inutil procurar-me, porque ninguem me encontrará”, teria ouvido sua esposa, descrita como uma senhora séria, de mais de 60 anos, “dotada de grande coragem e energia”. A voz teria se identificado como “o barão de...” e pedido missas, alegando que seus filhos eram “uns ingratos”. O “diabolico espirito”, narrou a Gazeta, teria se manifestado para a família outras vezes, inclusive com “injurias, fazendo uso de uma terminologia obscena e baixa”. Após a voz ameaçar e um grande quadro se desprender da parede, “sem que alguem nelle houvesse tocado”, Cunha chamou pela primeira vez a polícia.
“Comunicou o facto ao subdelegado daquella freguezia, que esteve em sua casa, nada porém tendo podido descobrir”, acrescentou a transcrição. Venho, então, um padre benzer a residência, que teria dado sumiço à macabra voz. Para a Gazeta de Notícias, o espírito “pandego e bregueiro” (engraçado e sem educação) teria “entendido que já era tempo de acabar com a brincadeira”.
Caos na Barão de Mesquita
Logo começaram as cartas ao jornal. Para alguns, era ventriloquia ou alucinação. Para outros, fenômenos sobrenaturais, espíritos. A voz, segundo a Gazeta, estava atormentando uma colégio da vizinhança. “O subdelegado daquella freguezia, Dr. Pinto Guedes, cercou uma noite a casa e fez todas as diligencias para descobrir o mysterio que a tanta gente assombrava. Apesar de dar busca, e rigorosa, no forro do predio e em todos os compartimentos, nada encontrou”, relatou a Gazeta. Na edição seguinte, desmentia-se o boato de que sete homens haviam sido presos por assombrar a residência: “Eram elles apenas curiosos que, como muitos outros, iam espreitar o que se passava. (…) Fica assim destruida a balèla. As almas do outro mundo ainda não foram prezas, apesar da boa vontade da autoridade local e dos seus agentes”.
O local havia se tornado “meca da peregrinação dos curiosos”, e os soldados às vezes precisavam dispersar a multidão e uma vez precisaram evitar que o portão fosse arrombado. A Gazeta noticiou que o descarrilhamento de bondes em frente à casa era atribuído às assombrações. O jornal também disse que residiu ali, antes do comendador Cunha, o barão de Mesquita, que dava nome à rua. Mas, segundo o proprietário do imóvel, a voz não mais se manifestava, desde o benzimento do padre – pelo menos essa era a desculpa dada às pessoas que pediam a ele para dormir ali, em busca de testemunhar alguma coisa.
Na edição de 16 de junho de 1889, a Gazeta Paranaense publicou que o comendador Cunha e a família se mudariam para uma casa na travessa do Moura Brito, número 27. Só já não haviam saído dali devido ao mau tempo. Após essa informação, tão misteriosamente quanto os acontecimentos da casa da Barão de Mesquita, as notícias sumiram das páginas do jornal. Sob nova direção, a edição de 20 de junho, uma quinta-feira, trouxe uma carta assinada pelo Dr. Magnus W. A. Sondahl, para quem o fenômeno era uma alucinação. Ao final, parênteses indicavam que as reportagens teriam continuação, mas a história não foi mais citada e a carta encerrou a repercussão do caso por aqui.
Seis edições depois e sete desde que João L. de Oliveira havia assumido a redação, em substituição a Benedicto Carrão, que aparecia como proprietário e redator do jornal, em 29 de julho de 1889, um sábado, a Gazeta Paranaense foi publicada pela última vez. O periódico contrário à Proclamação da República avisou que deixaria de circular por alguns dias, devido à necessidade de melhorias em suas oficinas, mas, após 13 anos e 142 edições, não voltou a circular.
Rua mal-assombrada?
Se os leitores da Gazeta Paranaense ficaram sem saber o desfecho da história, na capital do Império não foi muito diferente. Entre cartas, histórias de terror e teorias sobre fenômenos sobrenaturais, publicadas ainda sob o título “Almas do outro mundo”, numa mistura de literatura e ciência, fantasia e realidade, o caso da rua Barão de Mesquita foi sendo esquecido. E o que era um título tornou-se uma seção do jornal.
Da casa onde morava o comendador Cunha e a esposa não mais se falou. Citada inicialmente na edição 146 da Gazeta de Notícias e “esquecida” na 173, a rua “reapareceu”, na seção que deu origem, na edição 277, de 4 de outubro de 1889. “Novas manifestações”, relatou a publicação, “voltaram as almas. (...) Já não restava mais do que a recordação d´aquella série de fenômenos singulares, que por tantos dias prenderam a atenção do público”.
Segundo o jornal, os soldados que faziam a ronda na rua, na noite do dia 6 de outubro, ouviram assobios a partir da meia-noite, sem identificar de onde partiam. Ao tomarem um bonde, souberam do condutor (cobrador) histórias sobre o vulto que uma mulher, que chamavam de a baiana, “alta, muito alta, magra, vestida de preto”, que circulava por ali. Começaram, então, relatos sobre essa figura que assombraria Barão de Mesquita. Estes duraram algumas edições, sem mais citar a casa que deu origem às notícias. Esgotadas as histórias, a seção retomou os ares literários.
Obs.: as citações de trechos das notícias, entre aspas, são reproduções fiéis dos documentos pesquisados. Por isso, a grafia original não foi modificada.
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Referências bibliográficas:
Jornal Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, RJ. 1889. Edições 146 a 289. Acesso em: http://memoria.bn.br/hdb/periodo.aspx
Jornal Gazeta Paranaense. Curitiba, PR. 1889. Edições de 124 a 142. Acesso em: http://memoria.bn.br/hdb/periodo.aspx
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