ESPECIAL: Perícias contraditórias tensionam o debate
Para esclarecer a questão da propriedade dos terrenos da Vila Domitila, foram solicitadas três perícias no decorrer dos processos judiciais de reintegração de posse. (Foto: Michelle Stival da Rocha/CMC)
Para esclarecer a questão da propriedade dos terrenos da Vila Domitila, foram solicitadas, pelas partes interessadas, três perícias no decorrer dos processos judiciais de reintegração de posse – entre os anos de 1998 e 2006. Mas os relatórios finais são contraditórios.
A primeira, requerida pelas famílias em 1998 e elaborada por Renor Valério da Silva, colocava em dúvida a localização da propriedade pertencente ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Após contestação da autarquia, no ano seguinte foi realizada outra, pela engenheira Lúcia Lauand de Paula, que afirmava o contrário. Para o “desempate”, o perito Zung Che Yee afirmou, em 2006, que a documentação apresentada pelos moradores, oriunda dos herdeiros de Jorge Polysú, é de um imóvel localizado em Colombo.
Primeira perícia favorece moradores
Para as atuais famílias que lutam na Justiça, a área pertencente ao INSS não está localizada na Vila Domitila. A informação é referendada pelo perito Silva, nomeado em 1998 nos autos de uma ação de reintegração de posse promovida pelo INSS contra Gilberto Ovídio Félix, que tramitou na 2ª Vara Federal de Curitiba. O teor do documento, segundo a presidente da Associação dos Moradores do Bairro Ahú e Cabral, Shirley Terezinha Bonfim, foi considerado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região parâmetro para dirimir todas as questões em favor dos moradores. No entanto, ela afirma que não foi levado em conta pela 2ª Vara: “Esta perícia mostrou que não se trata da mesma área do INSS”.
Em seu laudo, Silva defende a hipótese de que se tratam de terrenos com duas origens. Uma de Tertuliano Teixeira de Freitas, onde está a Domitila hoje. Outra de Eugênio Ernesto Wirmond – adquirida pelo INSS – que estaria na frente da Penitenciária do Ahú, não atrás. “Respeitada a posição do rio Juvevê nesta planta, cortando a Avenida João Gualberto (sentido Centro-bairro), antes da confluência com a rua Anita Garibaldi, não existe possibilidade da área de 300 mil m² estar dentro do lote 129 [Domitila]. Portanto, a área vendida à autora [INSS] não estaria na posição ocupada por posseiros”, relata no documento. Em outro trecho afirma: “A área de propriedade da autora estaria na posição reivindicada se supormos o córrego que passa por detrás da penitenciária fosse o rio Juvevê e o córrego da Penitenciária fosse o que está demonstrado no anexo 1” [veja laudo].
“O laudo em tela parte da localização do rio Juvevê no mapa de Curitiba em 1935 para analisar confrontações indicadas em cartas datadas de 1871 e 1883. Ora, como saber se o rio chamado de Juvevê em 1935 era o mesmo rio chamado Juvevê do século XIX? Além disso, poder-se-ia imaginar a existência de um rio Juvevê e de um córrego Juvevê no século XIX”, analisa a juíza federal Gisele Lemke, na sentença de um processo em que julgou procedente a reintegração de posse em favor do INSS, contra a presidente da associação de moradores, Shirley Terezinha Bonfim.
Para a juíza, o perito não poderia partir do traçado de um rio datado de 1935 “para invalidar planta aprovada pela Prefeitura Municipal desde 1927, ratificada em 1959 e em 1976”. “Contudo, toda essa discussão parece irrelevante, uma vez que a decisão transitada em julgado [em 1984] nos autos n. 1.207/70 [ação de herdeiros de Antonio Polysú contra o INSS] excluiu a possibilidade de discussão do título do INSS, mantendo íntegro o registro da 6ª Circunscrição, o qual atesta a propriedade do INSS sobre a área da planta Vila Domitila. Portanto, qualquer discussão relativa à delimitação física da área deve partir dessa matrícula, não podendo retroagir ao século XIX, eis que prescrita a discussão a esse respeito”, afirmou Gisele Lemke na sentença.
Duas perícias validam terras do INSS
Na segunda perícia, elaborada para uma ação de usucapião que tramitou no juízo federal da 4ª Vara da Seção Judiciária do Paraná, a engenheira Regina Lúcia Lauand garantiu que o imóvel da família Polysú – que vendeu terrenos na Vila Domitila aos moradores – não está incluído na área transferida ao INSS, e sim em Colombo. Para ela, “a planta Polysú não é documento aprovado nem averbado em registro de imóveis”.
“A perita chega à conclusão bastante parecida com a do perito Zung [examinada mais adiante]. Diz ela que a área dos Polysú está situada atualmente em Pinhais [anteriormente município de Colombo e comarca de Curitiba] e que a área da matrícula n. 16.636 do RI da 6ª Circunscrição é do INSS e situa-se no bairro Cabral, sendo que a referência existente nos documentos aos bairros Bacacheri e Ahú justifica-se pela dificuldade técnica de determinação das coordenadas geográficas do início do século e pelo fato de a área situar-se em região próxima aos bairros do Ahú e Bacacheri”, citou a juíza Gisele Lemke, na mesma sentença em que avaliou o laudo de Renor Valério da Silva.
Para “desempatar”, a 2ª Vara Federal de Curitiba levou em conta o laudo de Zung Che Yee, elaborado em decorrência de uma ação de reintegração de posse do INSS contra Alus Natal Alessi e outros, também para fins de estudo da origem de titularidade das áreas em litígio. Yee desconsiderou documentações anteriores a 1920, quando o Estado leiloou a área (leia mais) e afirmou que o referido registro dominial é datado de 20 de dezembro de 1920, quando passou a ser obrigatório o registro de imóveis.
“Por falta de indicativo dos dados do título dominial primitivo, não se tem dados sobre a quem era proprietário anterior do referido imóvel tido como possuidor o Estado do Paraná, já que não se trata de terras devolutas”, escreveu no documento. A informação é questionada pelo morador Estevão Pereira, que chegou a fazer bacharelado em Direito para se defender dos processos. “Terras devolutas são terras do governo. Se não se trata de terras do governo, então cabe usucapião”, concluiu.
“Os levantamentos realizados na perícia, dão-se indicação de outros titulares anteriores do Estado do Paraná, do mesmo imóveis (sic), como por exemplo: Eugenio Virmond (1878 – 1909) e Tertuliano Teixeira de Freitas (22.11.1871), porém a veracidade dos fatos não foi certificada, pois foge do objeto da presente perícia”, continuou Yee no laudo. “Como foge se este é o objeto da perícia?”, provocou Pereira.
“Uma farsa”
Yee afirma que o imóvel originário do espólio de Jorge Polysú e sua esposa (Affonsina Polysú) possui “irregularidades de origem”. Para ele, confirmando a perita Regina, o terreno é localizado em Varginha, município de Colombo, sem definição de área. “Houve a introdução no inventário de Jorge Polysú e Affonsina Polysú, se efetivamente existente, de área de imóvel em litígio.”
A herdeira de Jorge Polysú, Mylka Polysú Soares e seu esposo, Abdon Soares, em 1970, reivindicaram na 2ª Vara Federal de Curitiba a nulidade do título dominial do INSS. De acordo com o perito, houve uma “farsa”, pois sustentaram que existiam dois imóveis distintos, com duas transcrições (7.966/1912 do Livro 3-D e 12.460/1920 do livro 3-F do Cartório de Registro de Imóveis) de imóveis denominados de Ahú e Atuba-Palmital. “As considerações acerca como sendo de dois imóveis distintos, tratam-se, na verdade, uma farsa”.
Segundo Yee, a transcrição 7.966 nada mais era do que o título dominial anterior ao da transcrição 12.460, quando o imóvel foi transmitido a Jorge Polysú. “E como consequência, não há dois imóveis, com denominações de Ahú e Atuba-Palmital, mas sim, somente o único imóvel de localização, caracterizado de situação em Atuba-Palmital, objeto da transcrição 12.460 do livro 3-F.” Para ele, a inclusão do imóvel como de caracterização “Ahú” tinha o propósito da indução ao erro, “de que o imóvel encontra-se no bairro com o mesmo nome”, isso teria passado despercebido ao longo da discussão da ação reivindicatória dos autos 1.270/70, que tramitou na 2ª Vara Federal de Curitiba.
“O Zung fez uma perícia dominial, não de localização. Ele disse que aquele imóvel do Polysú era na verdade em Colombo, mas não fez o levantamento da cadeia do imóvel do Antonio Da Ros. Esta perícia dele é cheia de vícios e ele mesmo relata que o objetivo da perícia é dominial, não de localização. O objetivo dele não é localizar, é identificar documentação, e assim fica fácil ele dizer que os documentos têm vícios na origem”, contestou Pereira.
Na CPI
Heloisa Grein Vieira, assessora jurídica do relator da CPI, Edson do Parolin (PSDB), explicou que as três perícias serviram de exemplo em toda a fase de provas documentais de todos os processos. “Atualmente, há centenas de processos protocolados pelas famílias da Vila Domitila em desfavor do INSS [e vice-versa]. Para ter uma celeridade processual, todas as ações sobre essa matéria são distribuídas por dependência [quando se tem uma decisão de uma determinada vara, todas as ações sobre aquele mesmo assunto são direcionadas à mesma vara] e designadas à 2ª Vara Federal, que utiliza da decisão transitada em julgado e decide por equivalência.”
A Justiça tem decidido que deve prevalecer a conclusão dos dois últimos peritos, assim como a planta aprovada pela prefeitura e arquivada junto à matrícula do imóvel do INSS, para ser verificada a localização da área. Em alguns casos, as sentenças têm determinado à autarquia ressarcir benfeitorias realizadas pelos moradores cujos registros dos imóveis datam de antes do trânsito em julgado do processo dos Polysú, em 1984.
“Esta perícia [de Renor Valério da Silva] mostrou que não se trata da mesma área do INSS”, disse a advogada Shirley Terezinha Bonfim. (Foto: Chico Camargo/CMC)
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